“É o desafio central do nosso século” – ou pelo menos foi assim que António Guterres, secretário-geral da ONU, definiu o combate às alterações climáticas.

Desde o Acordo de Paris, assinado em 2015 por todos os Estados membros da União Europeia (por 196 países no total), que os assinantes concordaram, pelo menos em teoria, num ponto fundamental e ostensivamente discutido: manter o aumento da temperatura abaixo dos 2ºC em relação à média pré-industrial, ainda que o consenso seja o de evitar que este aumento não ultrapasse os 1,5ºC.

Acontece que, precisamente pela sua aplicação não ser de caráter obrigatório e o desenvolvimento de relatórios previstos de 2 em 2 anos ser somente uma mera ferramenta analítica de estudo, esse objetivo não está a ser atingido. O relatório de 2022 da ONU é muito claro no que toca aos resultados apresentados: está previsto um aumento médio global de 2,5ºC até ao fim do século – ou seja, o Acordo de Paris não está a ser cumprido. Apenas um país – e não vale a pena tentar adivinhar qual é porque esta pequena vitória teve um mediatismo desproporcional à sua tamanha importância – cumpriu o Acordo, segundo dados disponibilizados pelo Climate Action Tracker (CAT) em 2021. Não, não é um país da União Europeia e também não são os Estados Unidos da América. Rússia e China muito menos. O único país em acordo com o Acordo – não será esse o objetivo de acordar algo? – foi a Gâmbia.

Claro que, naturalmente, esta “vitória” se deve a causas que pouco contribuem para o bem-estar daquela população – é uma falsa conquista que se ergue aos ombros da miséria daquele povo.

A Gâmbia não cumpriu o Acordo de Paris devido exclusivamente às suas boas práticas climáticas e esforços de descarbonização – deve-se, em grande medida, à pobreza. A economia ganesa é débil, o PIB não passa dos 653 euros por habitante (ocupa a 183ª posição na lista de economias internacionais1), a taxa de pobreza é de aproximadamente 53%2, apenas 65% das casas têm eletricidade3. Pior que a Gâmbia em termos de taxa de lares com acesso a eletricidade estão apenas países como Angola, Guiné-Bissau ou o Haiti.

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Tudo isto para dizer que o cumpridor solitário daquilo a que se propôs em 2015 em conjunto com mais de uma centena de países não vai ficar melhor por causa disso. A inação – ou melhor, a ação a conta gotas – das grandes economias mundiais tratará de tornar o sucesso forçado do país africano num grande nada.

Em 2021, nenhum dos países do G20 estava alinhado com o Acordo de Paris e todo o bloco da União Europeia teve a sua ação classificada como “insuficiente” de acordo com o CAT.

Este facto pode chocar os menos atentos, contudo, não chocará certamente Charles Michel, Presidente do Conselho Europeu, visto que este, ao mesmo tempo que tenta afincadamente resolver o grande problema que as alterações climáticas representam para o Mundo, viaja de jato privado. E não pouco. Das 112 viagens oficias que fez, 72 delas foram feitas em jatos privados – jatos esses que, em média, podem produzir cerca de 2 toneladas de CO2 por hora. Já agora, para efeitos comparativos, é importante mencionar que um cidadão europeu produz, anualmente, 7 toneladas – um bocadinho menos.

Mesmo quando se desloca para Conferências sobre o clima, o Presidente do Conselho Europeu não poupa toneladas de dióxido de carbono, porque isto de combater o aquecimento global é uma luta exigente e um pouco de conforto nunca magoou ninguém. Excepto o próprio ambiente, claro, mas esse não participa nas COPs, portanto, em princípio, não fará capas de jornal a queixar-se: ficará apenas por, mais cedo ou mais tarde, tornar-se na mais difícil batalha da Humanidade. E essa, certamente, não terá jatos privados suficientes, nem local para onde fugir.

Se os principais agentes políticos não fizerem parte das iniciativas que comandam, então nada feito. A credibilidade institucional neste tipo de assuntos depende da preocupação por parte dos políticos de praticarem aquilo que defendem em campanha, em discursos, na praça pública. Qual é o incentivo do cidadão comum europeu para reciclar, usar palhinhas de papel ou optar pelos transportes públicos se um dos seus mais altos representantes está a produzir mais CO2 do que ele produzirá em toda a sua vida?

A “elite poluidora” – os 10% que poluem mais do que metade da população mundial – não pode passar sem escrutínio. O trabalho do jornal POLITICO, que divulgou esta notícia, é importantíssimo.

A posição de Charles Michel já estava particularmente abalada antes deste caso. Agora, talvez se observe um descontentamento geral por parte também dos ativistas mais jovens, que, por sinal, são também os mais vocais.

A pressão da sociedade civil tem sido, de modo geral, positiva na luta ambiental. Resta saber se o poder político é capaz de não apenas seguir as convicções dos que pugnam por uma Terra habitável, mas de liderar os esforços conjuntos que todos os setores da sociedade – população geral, setor privado, setor público – devem reunir por esta causa.

Como uma vez disse John F. Kennedy: “Não estamos a fazer isto porque é fácil; mas sim porque é difícil.

Façamos o que neste momento parece impossível: salvar o planeta.

1 Dados Mundiais. (2020). Economia na Gâmbia em comparação com a UE – Dados Mundiais. DadosMundiais.com. Obtido 1 de abril de 2023, de https://www.dadosmundiais.com/africa/gambia/economia.php
2 The World Bank. (2022). COVID-19 Elevated Poverty in The Gambia [Text/HTML]. World Bank. Obtido 1 de abril de 2023, de https://www.worldbank.org/en/news/press-release/2022/11/09/covid-19-elevated-poverty-in-the-gambia
3 The World Bank. (2020). Access to electricity (% of population) | Data. Obtido a 1 de abril de 2023, de https://data.worldbank.org/indicator/EG.ELC.ACCS.ZS?name_desc=false