Há dias, a colunista do Público, Carmo Afonso, achou por bem instruir os seus leitores recomendando-lhes a aprendizagem do significado de 37 palavras de linguagem inclusiva. O texto é interessante tanto pelo conteúdo como pela forma. Quanto ao primeiro, parte do pressuposto que a linguagem é o resultado “de séculos de sociedade patriarcal e do uso do género masculino quando nos estamos a referir ao universal”. Como exemplo refere a palavra cliente e que as empresas (é implícita a maldade) quando se dirigem a estes usam “Caro Cliente” e não  “Caro/a/e Cliente”. Ao contrário, a linguagem inclusiva, com as 37 palavras cujo significado devemos aprender sob risco de ficarmos atrasados, inclui todas as pessoas (que, por sinal, é uma palavra feminina de que fazem parte os homens). Entre as 37 palavras estão os pronomes cuja utilização correcta passa pelo reconhecimento de “dois sistemas não oficiais de pronomes neutros: elu e ile”.

Sou totalmente contra qualquer tipo de discriminação. Seja racial, de género, social, sexual, profissional. As pessoas nascem com uma dignidade própria, sua (a dignidade também é uma palavra feminina, seja de mulheres ou de homens) e devem expressar em liberdade o que são, desenvolverem-se em total harmonia com as suas crenças, valores, a educação que lhes foi transmitida. Este é um ponto sem discussão. O mesmo não sucede com a utilização deste princípio elementar que deve regular as nossas vidas tornando-o num pretexto com vista a alterar a língua e, dessa forma, controlar o modo como nos exprimimos. Este truque é antigo, relaciona-se com o tom e com a forma do texto ao qual já lá vamos.

Atentemos, primeiro, ao conteúdo da mensagem de Carmo Afonso que evidencia uma confusão entre o género gramatical das palavras e o sexo biológico. É que estes, por vezes, confundem-se, mas não são o mesmo. Veja-se a palavra ‘pessoa’ que propositadamente utilizei em cima: tanto as mulheres como os homens são pessoas. Um homem é uma pessoa. Pessoa é um nome feminino, mas um homem é masculino. Parece uma aula da escola primária mas, e desgraçadamente para a nossa vida numa sociedade educada, a matéria tem de ser recordada. É curioso que, tanto ‘vida’ como ‘sociedade’ também são palavras femininas (o próprio vocábulo ‘palavra’ é feminino): eu tenho uma vida e vivo numa sociedade, apesar de ser homem. Mas há mais: a gramática é de tal modo complexa que o género das palavras muda entre as diferentes línguas. Tomemos, por exemplo, a palavra cadeira: em português é um nome feminino, à semelhança do françês (une chaise), mas não tem género em inglês (chair) e em alemão é masculino (der Stuhl). Mar em português é masculino, mas em francês é feminino. O Sol (masculino em português), die Sonne (feminino em alemão), o jornal (masculino em português) e die Zeitung (feminino em alemão). Os casos são inúmeros e não quero aborrecer o leitor com uma repetição desnecessária. O relevante é que nem sempre há uma relação entre o género das palavras e o género relativo ao sexo biológico.

E chegamos ao segundo ponto que é a forma, o tom arrogante que prepassa do texto da colunista do Público. Na verdade, Carmo Afonso não nos ensina. É mais subtil que isso e aparentemente modesta. A colunista sugere-nos, encaminha-nos, concede-nos a oportunidade de aprender. Porque se não o fizermos ficamos para trás. “Já não há desculpas”, tal qual diria uma professora depois de dada a matéria. Infelizmente, não creio que estejamos perante um simples caso de pedanteria, mas de um texto com um objectivo político concreto: a utilização da língua como arma de controlo, de vigilância do modo como nos expressamos, de como comunicamos uns com os outros. Não há aqui nada de novo, como sabemos pela história dos totalitarismos que começam pelo domínio da comunicação. A referência que fiz em cima à gramática é importante porque as regras gramaticais são, além de um conjunto de normas que nos ajudam a comunicar, uma protecção contra a arbitrariedade dos que visam utilizar a língua como arma política e de domínio.

Só assim se compreendem os despropósitos que referi nos primeiros parágrafos e que usam uma discriminação (que é condenável) para que se atinjam objectivos políticos. Também não há aqui qualquer novidade. Durante o século passado os direitos dos trabalhadores foram uma bandeira dos partidos comunistas e sabemos bem como viviam os trabalhadores nesses regimes despóticos. Sabemos que é nas sociedades liberais que os direitos sociais foram e estão salvaguardados. São factos do conhecimento público que se aprendem em qualquer estabelecimento de ensino. Tal como as regras da gramática.

Numa sociedade livre que se preze qualquer pessoa é livre de pensar e de escrever o que quer. Da mesma forma é importante que tenhamos consciência do oportunismo político de certos crentes em determinadas crenças. Excluir (como Carmo Afonso explicitamente faz no seu texto) quem não segue as suas regras é fazer o que, alegadamente, diz querer evitar. Uma vez mais a história demonstra-nos que é o que sucede quando se começa pela imposição de regras arbitrárias.

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