Tenho uma tia que vive na casa que era da mãe do Mata-Sete. O Mata-Sete era o Vítor Jorge, anónimo cidadão da Marinha Grande que em 1987 entrou para a história de Portugal como a nossa versão de um serial killer moderno. Como a alcunha indica, varreu sete pessoas, incluindo a mulher e uma filha. Por isso passou 14 anos na prisão, o que dá uma média de dois por cada morto. Não resisto a dizer, nada mau. Entretanto, morreu na Córsega, 31 anos depois das suas vítimas.

O objectivo deste texto nem é propriamente o de me queixar acerca do pouco que vale a vida de uma pessoa assassinada em Portugal, ao constatar as penas cumpridas (honestamente, nem eu sei ao segundo parágrafo qual o objectivo deste texto). No entanto, creio que existe uma força natural em escrever que tenho uma tia que vive na casa que era da mãe do maior assassino recente da nossa história. Como diria a Susanna Tamaro, estou com estas palavras a tentar ir onde me leva o coração.

Já o coração dos portugueses incha de orgulho quando muito rapidamente exclamamos que somos o primeiro país europeu a ter abolido a pena de morte (para crimes civis). O tom na época, em 1867, exprimia-se assim pelo Deputado Santana e Vasconcelos: “Portugal podia estar hoje abatido e pequeno, mas na minha opinião, pelo simples facto de abolir a pena de morte, coloca-se à rente da civilização europeia, e é neste momento solene uma das primeiras nações do mundo.” E o raciocínio que servia de base à decisão política era o de que as penas serviam para corrigir os culpados e não vingar as vítimas.

Continuando a ir onde o meu coração me leva, admitiria que não sou a favor da pena de morte. A ideia de o Estado matar é-me demasiado iliberal. Mas, se me desagrada que um Estado mate, também me desagrada que um Estado viva “solenemente colocando o país à rente da civilização europeia nas primeiras nações do mundo”. Não sei o que despreze mais: o poder de uma Lei que pode matar, ou o prestígio de outra que nos faz existir dentro do destino sempre heróico de progredir. Curiosamente, volta e meia as duas causas acabam juntas.

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Há quem considere que exageramos hoje no uso da palavra “vítima”. Há quem prefira a palavra “sobrevivente” à palavra “vítima”. O problema é que nem todas as vítimas sobrevivem. E com essas, não-sobreviventes, a distância rapidamente aumenta para se tornar um desaparecimento mesmo. Ironicamente, no caso do Vítor Jorge, sobressai a alcunha que lhe foi dada, ignorando os nomes das vítimas para as tornar num número. Ele não ficou como o Mata-Leonor, nem como o Mata-Luís, nem como o Mata-Maria do Céu, nem como o Mata-Isabel, nem como o Mata-José, nem como o Mata-Carminda, e nem como o Mata-Anabela. Ficou como o Mata-Sete. Sem nome é como geralmente ficam as vítimas que não sobrevivem.

As pessoas com que me relaciono no meu dia-a-dia mais facilmente são optimistas achando que a humanidade tem a vocação de progredir, do que pessimistas com um plano de matança colectiva. Não vivo, creio, próximo de muitos Vítores Jorges. Daí que hostilize mais o exagero dos idealistas do que os horrores dos assassinos. E prefiro mesmo encontrar alguma maldade em quem se orgulha de não matar os maus. De cada vez que um português se toma como moralmente superior pela antiquíssima abolição da pena capital, tenho vontade de ser um redneck num estado do sul dos Estados Unidos da América que mantenha a cadeira eléctrica a funcionar.

Uma civilização que vai à frente, como a nossa iluminadíssima europeia supostamente vai, com frequência deixa uns quantos para trás. Raramente me encontro no elenco das glórias do nosso progresso. É que sempre que quero chegar primeiro do que todos os outros, dou por mim a esquecer-me de coisas e de pessoas, sobretudo de pessoas, que, algures lá no passado arcaico, tiveram nomes. De certeza que já foram mais do que sete.