O maior património de um político é a sua palavra. Um político pode recuar, corrigir, ocultar e explorar todos os recursos da retórica com mais ou menos habilidade. Conforme o tamanho do recuo, a dimensão do erro ou a gravidade da omissão, esse político pode ter clemência. Ser compreendido ou, até, virar o eleitorado a seu favor. Mas faltar à palavra, que se pressupõe ser um compromisso de honra, é a negação da política.

André Ventura disse, na segunda-feira, 25, às 16h25, em conferência de imprensa o seguinte: “Transmiti também aos dirigentes do partido e transmitirei a todo o grupo parlamentar que reunirá amanhã e esta tarde que o Chega viabilizará a proposta que a AD apresentou para a presidência do Parlamento.” Minutos depois reiterava, para quem não tivesse ouvido bem à primeira: “Dei indicações hoje, repito, ao grupo parlamentar, quer ao antigo, quer ao novo, para a viabilização do candidato da AD à presidência do Parlamento”. Horas depois, em entrevista ao Observador, que seria emitida na manhã seguinte, repetia: “Foi uma conversa que fazia sentido entre lideranças de bancada. E o Chega deixou também o compromisso de viabilização. Portanto, foi entre lideranças de bancada, não meteu a liderança dos partidos.”

O presidente do Chega dava assim a sua palavra pública, três vezes, ao PSD: o Chega ia votar a favor de José Pedro Aguiar-Branco para a presidência da AR. A partir daí, a história é conhecida. No dia seguinte, quando se contaram os votos, a surpresa foi geral: o Chega optara por votar da mesma forma que o PS e a restante esquerda e tinham chumbado, com votos em branco, o nome proposto pela AD.

André Ventura apareceu perante os jornalistas sem uma linha de raciocínio clara. Primeiro, optou por dizer que ninguém podia provar que tinha sido o Chega a roer a corda porque a votação era secreta. Depois, questionado sobre se ele próprio tinha cumprido a palavra e votado em Aguiar-Branco, limitou-se a dizer: “O voto é secreto”. E, nas mesmíssimas declarações, acabou a admitir que, afinal, tinha sido o Chega a não viabilizar o nome porque Nuno Melo (que, já agora, só lidera dois deputados) tinha desrespeitado o Chega ao negar a existência de um acordo entre a AD e o partido que lidera.

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Nuno Melo disse que não havia acordo e, de facto, não houve. E não é verdade apenas porque o PSD o diz. É verdade porque as duas partes o disseram e uma delas foi o próprio André Ventura. Na mesma entrevista ao Observador, o líder do Chega foi claro a dizer que ele próprio não conversou com ninguém e que Joaquim Miranda Sarmento tinha informado o líder parlamentar do Chega que ia viabilizar o nome do vice-presidente do Chega (tal como disse à IL e ao PS). Em troca, Pedro Pinto deu-lhe a mesma garantia, que Ventura repetiu publicamente três vezes.

O André Ventura da segunda-feira defendia um “ambiente de estabilidade”, provar a existência de um “maioria absolutíssima de direita” naquilo que chamava de “momento importante porque temos a capacidade de definitivamente de arredar os socialistas e a extrema-esquerda dos lugares decisivos deste Parlamento.” Mas o André Ventura de terça-feira votou ao lado do PS, desbaratando qualquer confiança que o PSD podia começar, a partir dessa primeira conquista comum, a construir.

Luís Montenegro já tinha razões políticas para não fazer acordos com o Chega (os eleitores votaram nele a com garantias de “não é não”), agora ganhou uma razão moral. Como pode o líder da AD saber se uma garantia que André Ventura dá publicamente na véspera de uma votação do Orçamento do Estado será cumprida no dia seguinte? Como pode Montenegro saber se num dia André Ventura promete votar a favor de um diploma (seja na área das forças de segurança, da educação ou na saúde) e no dia seguinte vota ao contrário e ao lado do PS? Não pode.

Significa isso que Montenegro tem no PS um parceiro mais confiável? Nem por isso. Tem um parceiro que defende mais o regime, mas nem por isso mais fiável. Pedro Nuno Santos teve o mérito de ajudar a acabar com um impasse político, pois, caso contrário, António Filipe ainda seria presidente interino a esta hora. Mas também esteve longe, embora numa outra dimensão, de demonstrar maturidade política.

Pedro Nuno Santos decretou na noite eleitoral, até de forma deselegante para António Costa, que acabara a tática política. Que ia passar à oposição, que nada faria para obstacularizar a formação de governo, nem o normal decurso das formalidades para a AD iniciar a sua governação. Mas, à primeira oportunidade, não resistiu a criar entropias, bem juntinho ao Chega, para impedir a Assembleia da República de seguir o seu normal funcionamento. E de várias formas.

Primeiro, o PS decidiu que votaria em branco, não porque tivesse nada contra Aguiar-Branco, mas porque tinha sido o candidato a ligar a Pedro Nuno Santos e não Luís Montenegro. Depois, quando percebeu que o Chega tinha votado da mesma forma que o PS, apresentou um candidato (Francisco Assis), mesmo sabendo que nunca teria uma maioria para ser aprovado (algo que Ferro Rodrigues tinha em 2015, mesmo não sendo o PS o mais votado). Depois o PS, aí já pela voz de Eurico Brilhante Dias, disse que PSD e Chega tinham um acordo, o que sabia não ser verdade — pois o grau do compromisso do PSD com o Chega era exatamente o mesmo que tinha com o PS. Depois, novamente pelo líder,  Pedro Nuno Santos veio dizer que era dele a solução para resolver o impasse. Além da deselegância de um novo por-acaso-foi-ideia-minha, na verdade nem sequer foi.  Como em qualquer processo negocial, o PS propôs a rotatividade de um ano e o PSD contrapôs com o mandato dividido. E chegaram a acordo tendo por base a contra-proposta do PSD. A isso chama-se negociar, a isso chama-se democracia.

Pedro Nuno Santos criou um dia a expressão Chega-D, mas a primeira votação na AR foi mais uma espécie de “Chesquerda” — uma ação comum do Chega e toda a esquerda para impedir a escolha do partido mais votado nas eleições. Votação que não augura nada de bom para Luís Montenegro, que tem um orçamento para aprovar em outubro. Por essa altura, Montenegro estará entre a espada e a parede. O melhor, provavelmente, é escolher a espada. Ou seja: ir a votos.