Luís Montenegro, ao contrário do que se tem dito por aí, não mentiu. O primeiro-ministro disse, durante a apresentação do programa de Governo, que “introduziu uma descida das taxas de IRS sobre os rendimentos até ao oitavo escalão” e, após uma pausa para aplausos, acrescentou que “esta medida vai perfazer uma diminuição global de cerca de 1500 milhões de euros nos impostos do trabalho dos portugueses face ao ano passado”. Numa análise literal, é clarinho: Montenegro não mentiu. Mas fez pior: enganou com a verdade.

O primeiro-ministro estava, afinal, a apropriar-se de 1.327 milhões da redução já aprovada por António Costa, o que significa que o alívio fiscal que estava a propor era de apenas 173 milhões de euros. Ora, isto não é uma mentira, mas é um truque. Muito parecido àqueles que o PSD, na oposição, imputava aos governos de António Costa e, mais lá atrás, à máquina de propaganda socrática.

Há, no entanto, agravantes. O Governo teve oportunidades para desfazer o engano e não o fez. A Iniciativa Liberal, em matéria de impostos é como o Casimiro que deteta imitações do Sérgio Godinho: tem um nariz que parece um elefante e sentiu logo que cheirava a esturro. Pouco mais de uma hora depois, Rui Rocha dava como exemplo um caso (de um contribuinte que ganhava 1500 euros brutos) em que o alívio não seria mais do que 10 euros e perguntou ao primeiro-ministro se tinha “essas contas ou outras”.

Montenegro optou, então, por manter o logro. E, à segunda, já sem a verdade textual, respondendo ao líder da IL o que até já configurava uma mentira: “Vamos materializar a baixa do IRS para 2024, vamos fazer com que o esforço fiscal dos contribuintes portugueses sobre os rendimentos do trabalho seja desagravado em 1.500 milhões de euros”. A verdade enganadora torna-se aproxima-se aqui da convencionada mentira: primeiro, porque não havendo referência ao “face ao ano anterior” contribui para a ideia de que é um novo alívio de 1500 milhões; segundo porque diz “vamos fazer com que”. Ora, ou o plural majestático (“vamos”) inclui António Costa ou materializa a apropriação de uma medida do PS.

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Mas o festival continuou. A IL prosseguia, como o Casimiro, com um olho bem no meio da testa. E, após o almoço, continuava a pedir a conta ao Governo. E, desta vez, sem margem para dúvidas. Bernardo Blanco perguntava a Joaquim Miranda Sarmento: “Eu ouvi o senhor primeiro-ministro a dizer que, face ao ano passado, há uma descida de 1.500 milhões. Mas olhando para o orçamento deste ano, também já se previa que houvesse uma descida de 1.327 milhões. O que lhe pergunto é se estou a ver mal ou se esta grande descida que o Governo promete são apenas 173 milhões de euros a menos do que aquilo que o PS já ia fazer?”

A pergunta fora clara. Joaquim Miranda Sarmento sabia a resposta — tanto que a daria no dia seguinte na RTP — mas, de forma intencional, ignorou-a. Limitou-se, então, a responder: “Nós temos prioridade máxima à redução da carga fiscal e, sobretudo, à redução de IRS e seguramente nestes quatro anos e meio o senhor deputado vai muitas vezes concordar connosco.” Nesta grande vacuidade, não mentiu, mas omitiu, mantendo a perceção de que o Governo ia aliviar o IRS em 1.500 milhões. O engano continuava.

Na sexta-feira à noite, em entrevista à RTP, Joaquim Miranda Sarmento finalmente esclarecia o que não tinha feito no Parlamento. O Governo admitia, finalmente, que o alívio seria apenas de 200 milhões e que os liberais tinham razão.

Só depois disso o Governo emite, finalmente, um comunicado da Presidência do Conselho de Ministros, na manhã de sábado, para dizer que não mentiu, que não errou. E, mantendo a fragilidade dos argumentos, alega que a medida é a mesma que já esta inscrita no Programa de Governo e, antes disso, no Programa Eleitoral. Mas há uma nuance, no Programa Eleitoral, na página 35, era claro que se tratava de uma “redução de taxas marginais entre 0,5 e 3 pontos percentuais” — o que Montenegro não repetiu na AR, ajudando a criar dúvidas sobre se a proposta era exatamente a mesma. A mesma medida consta do Programa Eleitoral mas, em nenhum dos dois documentos, é referido o valor de 1500 milhões de descida global ou de 200 milhões de acréscimo face ao aprovado pelo PS. Só no Programa Eleitoral se encontra uma referência ao custo da medida, que diz que são 2 mil milhões no horizonte temporal 2024-2026, sem especificar se estes 2 mil milhões já incluem os 1,3 mil milhões de António Costa.

Perante todo o aparato mediático, o Governo reagiu, mas sem a prometida humildade. O líder parlamentar do PSD disse que o Governo não mentiu — o que é indesmentível. Mas Hugo Soares disse também que “o Governo não errou e o seu primeiro-ministro não errou”. E isso já não é verdade. O primeiro-ministro errou ao não explicar melhor a medida quando a apresentou no Parlamento. E o Governo errou, em particular o ministério das Finanças, no momento em que foi questionado sobre a verdadeira dimensão da medida, mas  preferiu não responder — sabendo estar a induzir o erro.

A nova confusão com o IRS é também um déjà vu. Já quando anunciou uma importante medida para os pensionistas no Congresso do PSD, Luís Montenegro não conseguiu fazê-lo de forma clara. A promessa era de que, com ele, nenhum pensionista chegaria ao final da legislatura com menos de 820 euros de rendimento disponível por mês. Mas, nas palavras de Montenegro, a proposta foi apresentada assim: “Até 2028, o rendimento mínimo garantido dos pensionistas Portugueses será de 820 euros.”

Ora, “rendimento mínimo garantido” é uma expressão que remete para o nome antigo do Rendimento Social de Inserção, uma prestação atribuída como um subsídio direto. Isso criou confusão porque, apesar de dizer que o ia fazer através do Complemento Solidário para Idosos, ficou a dúvida se os 820 euros podiam ser uma espécie de pensão mínima garantida. Correu mal, mas Montenegro explicou e ficou esclarecido do que se tratava. Agora ainda não está. Miranda Sarmento fala em 200 milhões, Castro Almeida em cerca de 300 e a conta direta dá 173. Por tudo isso, o Governo precisa urgentemente de explicar tudo bem explicadinho.

Luís Montenegro, em Madrid, seguiu mais uma postura de quem nunca se engana e raramente tem dúvidas. Não admitiu o erro de comunicação e disse que não vai a “reboque” do que “se comenta e se diz na praça pública.” Ainda que tenha tido a fineza, aparentemente sem ironia, de dizer que a “praça pública” o fez com “muita propriedade e muito legitimidade”, não deixou de culpar os media pela polémica. Mas, pior do que isso, não conseguiu dizer qual era o valor, afinal, que o Governo da AD vai descer se for excluído o descontão de António Costa. Os números que eram tão certos, tão concretos e definidos quando eram 1500 milhões na AR, afinal só vão ser “aprofundados” com o “detalhe de todo o seu alcance” após a medida ser aprovada em Conselho de Ministros.

O caso encurta o estado de graça do Governo e é a prova que o Executivo tem de calibrar a comunicação política. E mostra igualmente o gelo fino em que o Executivo de Montenegro caminha, com os dois partidos que têm força para o derrubar a partir de setembro, a saírem de imediato a pressionar o Governo. De todas as dificuldades que o Governo tem de enfrentar, convém que evite, a partir daqui, as que são auto-infligidas. Esta foi. A semântica do Governo, sendo verdadeira, foi também habilidosa, ardilosa e desmedida. Trata-se de enganar com a verdade, o que remete para o homónimo programa de Herman José. Embora, neste caso, talvez se aplique mais a frase da personagem Diácono Remédios, do mesmo humorista — citada há poucos dias pelo antecessor de Montenegro em São Bento: “Não havia necessidade”.