A troco de cinco euros, da mão de um sportinguista que troca velharias por carregamentos de telemóvel, trazem-se papéis bichados e volumes avulsos de alguém que viveu nos anos 40 na Índia (um diplomata?): um saco de farinha industrial com restos de uma casa esvaziada. Um guia de Colónia e outro de um hospital em Bangalore; cadernos de cópias de uma criança; caricaturas de Mussolini; estudos para o desenho de um jóquei; um número da Revista de Espiritismo; uma página dactiloscrita sobre avanços da Psiquiatria; slides; cartas de Lagos a Lisboa protegidas do nosso nariz por uma caligrafia desesperada. Entre os pertences, uma primeira edição autografada pelo autor a um embaixador indecifrável: Behold Thy Mother (NY: Macmillan, 1944), glosa político-religiosa de Whistler’s Mother do pintor James Whistler, da autoria de G. Bromley Oxnam (1861-1963), Bispo da Igreja Metodista.

Passo a tarde com as quarenta e duas páginas do livro que assevera que são as filhas e os filhos que criam as suas mães, frase sublinhada por um leitor. Talvez o saco seja o que restou da mãe que o embaixador foi fazendo, e agora alimenta curiosos em busca de memorabilia da selecção. Sobras de uma mãe, a minha ilusão de que redimo alguém trazendo comigo o saco de farinha inteiro — mas para que pão? Se o autor estiver certo, que mãe andaremos a criar: será que fazemos bom trabalho? Estranha responsabilidade que não há-de servir seja a quem for. É um pão que ninguém nos ensina a amassar.

No livro, afirma-se que as mães são lembradas pelos actos dos filhos, em absoluta “dependência”. Ninguém se lembra da mãe de Judas, nota o Bispo. A mãe de cada um é, para Oxnam, a espera pelo retrato que os filhos farão dela, retrato que não vêem e que ela não verá. A mãe do pintor aguarda sentada que o filho termine o quadro, mas a sua espera é também a da nossa mãe enquanto aguarda que a terminemos. Sentada, a mãe espera que o filho viva a sua vida. A sua imobilidade, interrompida para um copo de água ou para esticar as pernas, dissimula a confusão do lado de cá do cavalete. No fim, o que viu foi quase nada, pois pouco se mexeu, e não se levantou. Espera por nós, não tendo ainda chegado a ser, e posando em construção, inexplicavelmente estática: obra de que não nos poderemos gabar. Nada sabemos do silêncio da casa da mãe, quando dela saímos, afirma Oxnam. Ainda que possamos conhecer o silêncio deixado pelos nossos filhos, não podemos ouvir aquele que fica em nosso lugar.

Oxnam parece admitir apenas dois destinos possíveis: há quem nasça para mãe, e quem nasça para filho. Quem nasce para mãe, ou se realiza através das acções dos filhos, ou cai no esquecimento. Mas quem termina, por exemplo, o retrato das mães que perdem os filhos? E o que pintarão de memória os filhos que perderam as suas mães? Parece haver outra pintura na vida, de que Oxnam fala pouco. Os filhos e as filhas não criam a mulher que a mãe deles é. O que é preciso que façam para a verem alguma vez: o arranjo a cinza e negro que há além do retrato que eles pintam? Por consoladora que seja a ideia de que criamos as nossas mães, ninguém disse que aquilo que criamos era tudo o que havia. Como é a cara da mulher que há dentro da nossa mãe?

A mulher dentro da mãe é a que mais mói, e mais nos alegra: a que não temos como saber merecer, perceber, ou tornar parte da nossa vida. Mas sendo uma fonte de tantas águas, nada nos ensina a chegar a ela. E tantas vezes corre uma vida inteira sem que se tenha passado sequer meia hora à conversa com essa mulher. Que bela manhã de domingo se passaria na feira na sua companhia, à procura não importa de quê, trocando graças: um passeio memorável que é, em si mesmo, um destino para que não nos podemos de modo algum encomendar, nem saberíamos como pintar à vista.

Djaimilia Pereira de Almeida é autora de Esse Cabelo (Teorema, 2015).

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