Embora a recente mudança nos estatutos das ordens profissionais seja uma resposta às diretivas da União Europeia, acredito que esta reforma tem sido convenientemente utilizada pelo nosso governo para promover uma certa demagogia.  Em primeiro lugar, parece que querem iludir os nossos jovens, fazendo-os acreditar que a dificuldade de entrada no mercado de trabalho é culpa das ordens profissionais. No entanto, a lei que regula o acesso ao mercado de trabalho continua a ser a mesma: a lei da oferta e procura. Para ilustrar, em 2005, o número de advogados em Portugal era de 24.407, enquanto em 2021 esse número aumentou exponencialmente para 33.937, todos inscritos na Ordem. Contudo, o número de processos em tribunal manteve-se constante.

Relativamente a uma ordem mais recente, à qual pertenço, em 2016 éramos cerca de 18 mil e hoje somos quase 26 mil psicólogos. No entanto, isso não se traduz necessariamente numa entrada facilitada no mercado de trabalho, mesmo para aqueles já inscritos na Ordem dos Psicólogos Portugueses. Diversos estudos indicam que os portugueses têm visto os seus níveis de ansiedade e burnout aumentar, com um em cada cinco portugueses a sofrer de ansiedade ou depressão durante a pandemia. Contudo, foi precisamente nesse período que o governo congelou durante cinco anos o concurso para a contratação de 40 psicólogos para o SNS. Além da contratação de apenas 40 psicólogos ser claramente uma desconsideração para com a população e as suas necessidades, a entidade que alega a necessidade de regular as ordens devido às ‘restrições’ que estas impõem ao livre exercício da profissão, é também a que causa a maior parte dos constrangimentos atuais.

Os verdadeiros constrangimentos surgem da limitada capacidade económica da maioria das empresas portuguesas. Isto frequentemente resulta na sua indisponibilidade para contratar, ou seja, na falta de incentivos. Não se deixem enganar ao pensar que o estágio profissional subsidiado pelo IEFP é um incentivo para a contratação. Isto é ainda mais verdadeiro agora que o novo diploma, que altera os estatutos das ordens profissionais, obriga a que o estagiário receba um salário igual ou superior a 950 euros.

Na minha perspectiva, a maioria das empresas e sociedades que desejam contratar provavelmente precisarão ativar este apoio estatal. No entanto, isso cria uma ilusão para o estagiário, que ao terminar o contrato com o IEFP, provavelmente perderá o seu posto de trabalho. Além disso, na realidade, quem estará a pagar ao estagiário não serão as empresas, mas sim os contribuintes que irão suportar este tipo de apoios estatais. Se esses apoios não forem suficientes, voltamos à incapacidade das empresas em suportar tais encargos. Assim, regressamos à lei da oferta e da procura, onde os estagiários provavelmente terão de aguardar pela sua entrada no mercado de trabalho para usufruírem de um salário mais adequado. Isto pode ser visto com bons olhos pelos rankings portugueses e da União Europeia, onde se poderá observar um ligeiro aumento do salário dos jovens, mas que não reflete a realidade total do fenómeno.

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Creio que com base nestes elementos, podemos deixar cair por terra os argumentos que somente as ordens criam constrangimento à oferta. Além disso, como diria de algum modo Wittgenstein, estamos perante um jogo de palavras. O constrangimento devidamente contextualizado pode dar lugar a critério e certificação profissional.

É verdade que as ordens profissionais não devem apenas representar interesses profissionais, mas também devem respeitar, além do interesse público, os interesses dos profissionais. Afinal, uma ordem que não esteja ao serviço dos seus profissionais e da matéria que representa deixa de ser uma ordem e passa a ser uma entidade como a Deco. Esta é uma característica necessária a qualquer boa regulação profissional, porque se não houver este equilíbrio, podemos estar a oferecer um serviço público de baixa qualidade, o que afetaria a segunda premissa deste parágrafo.

Além disso, do ponto de vista económico, isto permite diminuir a assimetria de informação. Em princípio, nem todas as pessoas são desinformadas quando procuram um serviço, mas em determinadas áreas, distinguir o trigo do joio pode ser complicado. Por exemplo, o próprio Freud sugeriu que a psicanálise deveria ser um procedimento tão preciso e objetivo quanto uma cirurgia. Mas como é possível isso acontecer quando muitos acreditam possuir a habilidade de ‘brincar ao psicólogo’? De facto, se hoje existe menos estigma em relação a esta profissão, isso se deve ao trabalho da Ordem dos Psicólogos Portugueses. No fundo, as ordens não são apenas uma questão de estatuto, mas também de dignidade e de educação sobre a importância e a epistemologia das suas profissões.

De modo a ilustrar, sei que, infelizmente, ainda existem algumas pessoas que desvalorizam o trabalho do psicólogo. No entanto, questiono-me se alguém se atreveria a submeter-se a uma operação delicada com um cirurgião que obteve a sua licenciatura em cristais quânticos? Pode parecer uma piada, e ninguém se arriscaria a afirmar-se cirurgião sem a devida credibilidade. Contudo, recordo-me de, na minha infância, conhecer um dentista sem formação que extraía dentes e, para colocar um implante, encaminhava o paciente para um ‘colega’ implantologista.

As ordens profissionais surgiram para permitir uma maior regulação e certificação de qualidade, com o objetivo de avaliar a aptidão dos seus profissionais. Sim, para isso, é necessário que a ordem possa, em certa medida, duplicar conteúdos formativos. O conhecimento é um contínuo que requer constante manutenção. As ordens, para facilitar uma boa introdução ao mercado, devem acrescentar metas práticas para instrumentalizar esse conhecimento e integrar boas diretivas éticas e deontológicas.

A deputada do PS, Joana Sá Pereira, vai mais longe e defende que “as ordens devem aceitar o reconhecimento de habilitações obtidas no estrangeiro e devidamente reconhecidas em Portugal“. No entanto, questiono-me: quem faz esse reconhecimento? As universidades? O Estado? Ou deveriam ser as próprias ordens? A verdade é que a deputada, sendo licenciada e mestre em Direito, deve entender melhor do que eu que as leis variam de país para país. Então, como é que a habilitação do candidato estrangeiro é reconhecida? A mesma deputada defendia que “as ordens devem promover estágios que não avaliem nem dupliquem conteúdos formativos já lecionados no ensino superior”. Neste caso específico, como vamos avaliar o conhecimento do candidato sobre a Constituição da República Portuguesa, já que todo o curso é fundamentado nela e é o conhecimento fundamental para o exercício da profissão em Portugal?

Ambas as medidas foram aplicadas a todas as ordens com o recente estatuto das ordens profissionais. Acredito que, dependendo da profissão, outros procedimentos possam e devam ser aplicados. Por exemplo, um fisioterapeuta pode atuar tanto aqui como na China e, em princípio, obter os mesmos resultados. No entanto, talvez seja a minha ignorância a falar mais alto neste caso. No que diz respeito aos psicólogos, a Ordem dos Psicólogos Portugueses esteve por detrás da negociação de um certificado europeu de competências para psicólogos (Europsy). Este certificado permite ao psicólogo, que o possui, atuar em qualquer um dos 38 países europeus que aderiram ao Europsy, pois o sistema de certificação do país irá reconhecer a sua atuação por equivalência.

Isto é um exemplo das boas práticas de uma ordem que se esforça para responder a algumas das adversidades que os seus profissionais enfrentam, ao mesmo tempo que protege os potenciais clientes, regulando através da qualidade.

Relativamente à proposta para os membros dos órgãos de fiscalização, na qual 40% serão representantes da profissão, 40% provêm do meio académico e não estão inscritos nas ordens, e 20% são personalidades de mérito reconhecido, vejo, de facto, algum valor. É evidente que a distribuição percentual não é totalmente aleatória, pois reflete claramente a necessidade de a maioria dos membros serem externos à ordem. Isto, mais uma vez, retira autonomia às ordens para exercerem a sua prática como consideram adequado. Se pessoas como Susana Peralta veem como um bom augúrio a diminuição do poder das ordens, eu mantenho-me um tanto ou quanto cético em relação a isso. Na verdade, estamos apenas a optar por transferir mais poder para outra organização, denominada Estado.