No dia 10 de março de 2021, durante a presidência portuguesa, os representantes das três instituições da União Europeia assinaram uma declaração conjunta para o lançamento de uma iniciativa que procurava envolver os cidadãos europeus na reflexão sobre o futuro da instituição: a Conferência sobre o Futuro da Europa. Apesar da confusão habitual promovida pelas elites políticas entre Europa e União Europeia, os dirigentes europeus pretendiam colmatar a mais antiga e profunda de todas as críticas dirigidas a este projeto: as que remetem para a sua lacuna democrática, nomeadamente quanto ao clássico défice de participação dos cidadãos europeus. Com o objetivo de evitar a contaminação pelo vírus inglês, Ursula von der Leyen abriu o seu mandato 2019-2024 com a garantia de que daria voz aos cidadãos europeus para uma participação real no futuro da União Europeia: a conferência garantiria isso através de uma plataforma digital multilingue e a organização de Painéis de Cidadãos Europeus.

Em Portugal, e de modo menos ambicioso, o executivo de Carlos Moedas apresentou um projeto que assenta na mesma lógica de participação cidadã: a iniciativa chama-se Conselho de Cidadãos e pretende “envolver os cidadãos na tomada de decisão de uma maneira não partidária”. Mais uma vez, o objetivo passa por aprofundar a dimensão democrática da cidade: “Queremos que a participação dos cidadãos na construção da cidade seja um momento de democracia em que os responsáveis políticos ouvem primeiro para decidir depois.” O primeiro Conselho teve lugar neste fim de semana, 14 e 15 de maio, mas outros estão previstos até ao final do mandato do executivo.

O que estas duas propostas – Painéis de Cidadãos Europeus e Conselho de Cidadãos – têm em comum é consistirem em modos de democracia deliberativa, um tipo específico de teoria democrática que tem como objetivo corrigir as lacunas da democracia representativa ou liberal. Mas o que é isso de democracia deliberativa?

1 As teorias de democracia deliberativa

O termo democracia deliberativa foi cunhado por Joseph  Bessette, em 1980, e pretende colocar a ênfase democrática no processo deliberativo. Esta viragem deliberativa, que decorre da viragem linguística que se tem verificado nos últimos dois séculos, foi promovida na filosofia sobretudo por Jürgen Habermas, mas tem sido especialmente aproveitada no domínio da ciência política para o desenvolvimento de instrumentos que permitam lidar com a crise das democracias representativas (em Portugal, Filipe Carreira da Silva tem-se debruçado sobre o tema).

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Recordemos que a democracia representativa é o regime político criado pelos modernos como forma de compatibilizar as exigências de soberania popular (que decorrem das teorias de contrato social que conduzirão às revoluções liberais) com os novos estados modernos. O mecanismo de representação, estranho aos antigos, permitia superar não só as dificuldades que resultavam de grandes territórios e populações, mas também proteger o exercício do poder da interferência das classes populares, destituídas do conhecimento que as elites esclarecidas dos séculos XVIII e XIX se outorgavam.

Foi este mecanismo de representação que moldou as democracias atuais, colocando os cidadãos no papel de eleitores que escolhem, em períodos regulares, os seus representantes, a quem caberão as decisões legislativas. E a crise das democracias liberais assenta, genericamente, na crise deste mecanismo de representação – isto é, no afastamento crescente dos cidadãos relativamente aos seus representantes, acompanhado de uma progressiva desconfiança quanto ao funcionamento do sistema político, em especial partidário.

Nos anos de 1990 a ciência política já começava a estudar os fenómenos crescentes de abstenção eleitoral, mas é a crise financeira de 2007/8 e o modo como os cidadãos passaram a percecionar os detentores de cargos políticos como tendo sido incapazes de evitar os seus efeitos catastróficos que agravou a desconfiança face ao sistema político. Os movimentos populistas, que despontaram um por todo o lado nesta altura, resultam precisamente deste contexto: o populismo nasce da falta de confiança no mecanismo de representação, oferecendo uma relação imediata com o líder, que se apresenta como ouvindo e expressando a voz dos cidadãos.

As teorias deliberativas vivem também do fracasso da democracia liberal, mas apresentam uma estratégia radicalmente diferente para corrigir essas lacunas. Inspirando-se na Grécia Antiga, estes autores apelam à participação dos cidadãos comuns no processo deliberativo, por forma a garantir maior legitimidade ao processo de decisão. Através deste mecanismo, decisões concretas ou orientações para futuras políticas públicas resultariam não da atuação das elites políticas, mas do debate e voz dos cidadãos implicados nesses processos de decisão.

2 O mecanismo deliberativo

O regime democrático ateniense assentava num sistema de democracia direta: os cidadãos atenienses participavam nas assembleias por si mesmos (e não em representação), discutindo e decidindo diretamente os assuntos da cidade. Como as assembleias eram abertas, qualquer cidadão podia, ou devia, participar (os níveis de participação eram, na verdade, menos elevados do que aquilo que romantizamos); e, para além disso, os cidadãos podiam ser escolhidos, por sorteio, para exercer um cargo público durante um período limitado de tempo. Estes dois mecanismos garantiam o princípio de igualdade que associamos ao regime democrático: não só todos estavam em pé de igualdade no processo deliberativo, como todos poderiam ser igualmente escolhidos para desempenhar cargos públicos (o sorteio garantia essa igualdade).

É aqui que se inspiram os projetos deliberativos atuais: a ideia é escolher, por sorteio, um número reduzido de cidadãos (para que as assembleias sejam exequíveis, embora o número possa variar muito de proposta para proposta); esses cidadãos deverão depois discutir um tema específico, recebendo ajuda de técnicos e especialistas, até chegarem a uma decisão; essa decisão será depois vinculativa, se obrigar as restantes instituições, ou sujeita a referendo para que os restantes cidadãos a possam aprovar. (A mais interessante proposta de assembleia deliberativa tem sido dinamizada por James Fishkin.)

Notemos, no entanto, que não se trata de uma proposta de democracia participativa: democracia deliberativa e democracia participativa não se confundem. A proposta deliberativa tem características muitos específicas:

  1. Não se trata de um sorteio livre. A escolha dos cidadãos deverá reproduzir a constituição da sociedade e há, nesse sentido, uma procura por representatividade: não uma representação ao estilo liberal ou burkiano, mas uma representatividade que reflita a constituição demográfica das sociedades, atendendo ao sexo, etnia, idade, geografia, etc. –, com a garantia de não refletir a pressão de qualquer grupo de interesse ou movimento político específico.
  2. A ênfase na deliberação assenta no pressuposto de que a decisão não está tomada antecipadamente pelos participantes: a decisão será tomada no próprio processo deliberativo, em resultado da troca de argumentos e razões e perante a informação transmitida pelos técnicos e especialistas (refletindo um processo racional). O expectável é que os participantes construam a sua opinião em resultado desse processo, significando, na maioria das vezes, uma mudança face à sua opinião inicial.
  3. As assembleias devem refletir pluralidade ideológica e de experiência de vida: é essa pluralidade a garantir um efetivo processo deliberativo, promovendo dinâmicas de diálogo e respeito mútuo.
  4. A legitimidade das decisões tomadas ao abrigo de assembleias deliberativas decorre do facto de serem tomadas por cidadãos comuns que foram escolhidos por sorteio – pelo que podíamos ter sido nós a ocupar aquele lugar –, ao invés de serem tomadas pela elite política, sem qualquer contacto com a vida real das pessoas comuns. Convoca, nesta medida, uma nova lógica política que se baseia num mecanismo deliberativo.

3 O fim do contrato social

Em 2015, Manuel Arriaga publicou Reinventar a democracia: 5 ideias para um futuro diferente: embora tenha um estilo panfletário (foi escrito nos anos quentes da Grande Recessão) e não aprofunde teoricamente as ideias, o livro apresenta de modo claro o argumento de que a deliberação cívica permite reinventar a democracia e superar a desconfiança face ao sistema político e a sensação de falta de controlo sentida pela maioria dos cidadãos. A aplicação concreta desta sugestão seria exemplificada pelo projeto Fórum dos Cidadãos.

Mais uma vez, o que encontramos nesta proposta não é uma tentativa de eliminar por completo a democracia representativa. O que se procura é introduzir novas ferramentas e corrigir fragilidades por forma a garantir que a democracia recupere a sua legitimidade. Mas, na verdade, estas ideias são mais revolucionárias do que podem parecer à primeira vista. Uma reforma deliberativa conduziria a uma reformulação dos pressupostos de legitimidade do sistema político: se a modernidade começa com o contrato social e a ideia de que a legitimidade do poder político resulta de um contrato celebrado entre os indivíduos e o governo, esta reinvenção democrática significaria que a legitimidade caberia agora ao processo deliberativo em que se teriam de basear as decisões políticas. Não existiria um momento fundador, mas um processo de legitimação a ser cumprido regularmente.

A substituição do contrato social por um mecanismo deliberativo como ferramenta intelectual para pensar as sociedades políticas atuais poderia efetivamente ajudar à legitimação política num momento em que vivemos uma espécie de pós-liberalismo. É para aí que caminhamos?

4 Os problemas das atuais assembleias de cidadãos

A proposta deliberativa é extremamente sedutora, pois apela a uma visão mais genuína da democracia, em que a participação seria mais alargada e mais vozes seriam ouvidas, o que garantiria uma decisão mais justa. Pode ser entendida como um mecanismo mais fiável para uma decisão tão sensível como a da eutanásia (que seria despartidarizada) e poderia ser empreendida antes da realização do referendo (expectável? inevitável?) sobre a regionalização.

Mas não nos podemos esquecer de que todas as iniciativas têm problemas e limitações, que devem ser reconhecidos e, se possível, corrigidos. Vejamos dois desses problemas e duas dessas limitações nas iniciativas atuais:

Em primeiro lugar, uma proposta deliberativa só será eficaz se garantir um efetivo envolvimento das populações e não consistir em mera propaganda. Isto é particularmente relevante no que diz respeito à Conferência para o Futuro da Europa: apesar de alguma projeção nos meios de comunicação, a iniciativa teve uma participação real miserável. Se somarmos os elementos dos painéis de cidadãos (800) com a interação na plataforma digital, temos uma participação de pouco mais de 600 mil pessoas num universo de mais de 500 milhões. Podemos dizer que é melhor do que nada – mas não podemos afirmar uma legitimidade política real. No caso de Lisboa, o problema reside no modo como o sorteio foi efetuado: de acordo com o regulamento da iniciativa, a participação não é sorteada por todo o universo de cidadãos lisboetas, mas apenas entre aqueles que se inscrevem no programa. Esta opção, para além de eliminar o mecanismo de legitimidade por reconhecimento no outro, é uma forte garantia de distúrbios na representatividade, sem evitar a possibilidade de controlo por grupos de interesse ou de ativismo.

Em segundo lugar, em nenhuma das iniciativas se tomaram ou tomarão decisões concretas e vinculativas: as decisões destas assembleias servirão apenas como indicação para futuras decisões políticas – pelo que não fica assegurada a fonte de legitimidade que o mecanismo deliberativo pretende oferecer. O resultado, no caso dos Painéis de Cidadãos Europeus, é uma longa lista de recomendações para cada um dos quatro painéis, quase sempre formuladas de modo abstrato e, muitas vezes, em contradição.

Em terceiro lugar, podemos levantar dúvidas quanto à eficácia desta tentativa de correção no atual momento político: é possível que o mecanismo deliberativo tivesse sido eficaz há duas décadas, quando se notaram os primeiros indícios da crise representativa. Mas, na terceira década do século XXI, com sociedades tão polarizadas, desconfiadas e diversas como as nossas, é a própria lógica deliberativa que fica em causa. Na verdade, os fenómenos que têm marcado as sociedades atuais é a de uma recusa profunda da própria ideia de debate racional assente na troca de argumentos: basta recordar os castigos que estavam destinados a quem ousasse questionar o discurso oficial e as medidas destinadas a combater a pandemia nos últimos dois anos.

Por último, importa ter em conta a principal limitação deste tipo de iniciativa. As assembleias de cidadãos devem ser organizadas de acordo com um princípio real e honesto de pluralismo. Se estiverem pré-orientadas para certas decisões válidas ou legítimas – surgindo o processo de esclarecimento como uma mera formalidade –, o mecanismo deliberativo não cumprirá a sua função. Trata-se de um aspeto difícil de avaliar, mas se o objetivo das assembleias deliberativas é que os cidadãos cheguem a conclusões pré-determinadas pelas elites políticas, então manteremos o principal erro das democracias liberais – o silenciamento dos cidadãos – e as assembleias de cidadãos não poderão salvar a democracia.