1A natureza humana
Na introdução a Arquipélago de Gulag, Aleksandr Soljenítsin justifica a sua investigação literária:
«Mas as mesmas mãos que nos apertaram as algemas abrem agora conciliadoramente as palmas e dizem: “Não se deve… não se deve remexer no passado!… Aquele que recorda o passado perde um olho!” E, no entanto, o provérbio acrescenta: “Aquele que o esquece perde os dois!”»
Embora Soljenítsin se estivesse a referir a acontecimentos históricos, o provérbio é igualmente válido para o domínio da teoria política: quando, perante os acontecimentos políticos dos nossos dias, nos viramos para os autores clássicos, corremos o risco de perder um olho. Mas se não o fizermos, tornamo-nos incapazes de compreender o que nos está a acontecer. É por essa razão que faz sentido revisitar aqueles que pensaram politicamente antes de nós e, em particular, os termos a partir dos quais pensaram.
Um desses autores é o founding father norte-americano James Madison, um autor pouco conhecido no nosso país, como nota José Gomes André, apesar de uma das suas frases ser recorrentemente repetida:
«Mas o que é o governo em si próprio senão a maior de todas as reflexões sobre a natureza humana? Se os homens fossem anjos nenhuma espécie de governo seria necessária.» (O Federalista, n.º 51)
Na verdade, este foi sempre o ponto de partida do pensamento político, o que implica um patamar mínimo de pessimismo antropológico (dentro de uma enorme variabilidade): é porque não somos anjos que precisamos de política, leis e governo.
Consideremos a primeira obra de filosofia política: A República, de Platão, concebida para refletir sobre a justiça e a cidade justa. A necessidade de o fazer encontra-se historicamente justificada: uma conflitualidade constante marcava a sociedade ateniense, que resultava não só do confronto entre fações políticas, mas também, como Aristófanes faz notar nas suas comédias, da obsessão dos atenienses pelos litígios judiciais. Platão pertence ainda à geração que sofreu o trauma da morte de Sócrates, que levou a que muitos dos seus discípulos, perante a condenação do homem mais justo e sábio do seu tempo, se posicionassem contra os excessos populares do regime democrático.
Para Platão, o regime democrático não estava de acordo com a natureza humana e as suas fragilidades. Os homens são genericamente irracionais, dominados pelos apetites e paixões e sujeitos à doxa e à aparência – entregar, por isso, o governo da cidade à turba ignorante resultaria no caos, como uma nau que não consegue chegar a bom porto.
É possível, ainda assim, minorar estas debilidades – com educação e uma cidade justa, na qual “cada um executa a sua tarefa específica, em cada uma das suas três classes” (441d). A cidade seria, assim, dividida em três classes, estando destinada a cada uma delas uma função específica; e apenas a uma dessas classes caberia a função de governar: à classe composta pelos que detêm a razão, os sábios (442d). À pergunta sobre quem deve governar, Platão respondia: os filósofos.
2O governo limitado
A República traça um detalhado processo educativo para aqueles que mostram ter uma natureza dada à sabedoria, visando prepará-los para o reconhecimento da verdade, a identificação do bem comum e o empenho na unidade e felicidade da cidade. Este tipo de pessoas revelaria, à partida, pouco interesse por reconhecimento e riquezas, mas Platão acrescenta um mecanismo de proteção: as duas classes superiores ficariam impedidas de ter bens e família. Afinal, com esse princípio,
«[n]ão desaparecerão processos e acusações recíprocas por si mesmos, por assim dizer, devido ao facto de ninguém possuir nada em particular, senão o corpo, e tudo o mais ser comum? De onde resulta que eles não conhecerão dissensões, daquelas que surgem entre os homens, devido à posse de riquezas, filhos e parentes?» (464d-e)
Esta medida serviria como proteção última, pois Platão sabe que mesmo os mais sábios poderão ser tentados a beneficiar-se a si e aos seus amigos e familiares. Mas há, apesar desse reconhecimento, uma ideia seminal que será apropriada pelos grandes projetos utópicos e totalitários: a sedutora ideia de que, através da educação, é possível redimir a nossa natureza e as suas limitações e criar um homem novo, totalmente empenhado no desígnio coletivo. O facto de todos esses projetos terem redundado em desastres para a humanidade pareceria, a esta perspetiva, uma mera infelicidade.
Ora, o liberalismo rompe com esta tradição ao deixar à esfera privada a disciplina da alma; na esfera pública, não se ambiciona a redenção do espírito: visa-se, antes, a criação de instituições que limitem e condicionem a atuação dos governantes, pelo estabelecimento de regras, normas e procedimentos que os obriguem a refrear comportamentos de abuso. Isto significa estarem sujeitos à lei mesmo quando são os mais sábios. Como prossegue Madison na citação precedente:
«Se fossem os anjos a governar os homens, não seriam necessários controlos externos nem internos sobre o governo. Ao construir um governo em que a administração será feita por homens sobre outros homens, a maior dificuldade reside nisto: primeiro é preciso habilitar o governo a controlar os governados; e, seguidamente, obrigar o governo a controlar-se a si próprio.»
Ao estabelecer este princípio de limitação, o pensamento liberal permite recuperar os valores democráticos, protegendo as liberdades individuais dos desejos da maioria e dos excessos dos governos. Isto não significa que todos os governos eleitos democraticamente são bons, mas significa que, caso se revelem incompetentes, os danos podem ser limitados e esses governos podem ser afastados nas eleições seguintes.
3A salvaguarda eleitoral
Foi precisamente esta mudança de perspetiva que Karl Popper introduziu com o seu clássico A sociedade aberta e os seus inimigos, de 1945. Para Popper, a questão central da teoria política não deveria ser “quem deve governar?”, uma vez que ela se predispõe a uma resposta antidemocrática ou à legitimação de qualquer governo decidido pela maioria. A questão central deveria ser “como podemos criar instituições políticas por forma a que governantes maus ou incompetentes possam ser afastados sem produzir demasiado dano?” Popper concluía que a democracia é o melhor regime político por permitir fazer isto: afastar maus governantes, de modo não violento, através de eleições.
O argumento de Popper apresenta um mérito inegável: ele reconhece a possibilidade de erro dos eleitores, i.e., a possibilidade de as nossas fragilidades nos levarem a escolher maus governantes. Mas a salvação existe ao permitir que possamos afastar esses maus governantes, sem ter de recorrer à violência, nas eleições seguintes. As únicas exigências são a de que o desenho institucional se mantenha intacto e de que os governantes não se coloquem acima da lei, e reconheçam que são as suas decisões que têm de respeitar a lei ao invés de sujeitar a lei àquilo que consideram, ao estilo platónico, a melhor decisão.
Em última instância, a principal responsabilidade daqueles que ocupam cargos de poder é garantir o respeito pelas regras institucionais, pois só instituições fortes resistem a maus governos. O que um governo não pode fazer é enfraquecer as instituições e o Estado de direito e depois agitar o papão da extrema-direita, como tem acontecido em Portugal e Espanha.
Em bom rigor, a razão para o crescimento dos projetos extremistas encontra-se nos partidos que governam (mal) e insistem em ignorar as preocupações dos seus cidadãos. Se o fazem e se alimentam a sensação de revolta para com o regime, não podem ficar surpreendidos com o resultado. E, nessa medida, a questão central dos nossos regimes não é como evitar que a extrema-direita chegue ao poder (algo que é legítimo), mas como manter instituições saudáveis que permitam afastar maus governos (algo que é necessário).