Os golpes de Estado estão novamente a multiplicar-se. Foram 26 de 2008-2018, o número mais baixo desde 1945. Desde 2018 já foram pelo menos 27, incluindo este golpe falhado de Prigozhin. Mas será mesmo um golpe? E isso tem alguma importância?
Não há golpistas
Prigozhin agora diz que, afinal, não quis dar um golpe. E Putin agora diz que tudo não passou de um mísero motim. Se ficássemos pelas declarações dos protagonistas não teríamos praticamente golpes de Estado. Raramente alguém afirma orgulhosamente ser um golpista. Os golpes de Estado não são uma grande fonte de legitimidade. É por isso que um primeiro golpe dá frequentemente origem a círculo vicioso de mais golpes. Se alguém toma o poder pela força, porque é que outros não o fariam? É também por isso que um golpe triunfante é muitas vezes promovido a revolução. Em Portugal, o 28 de Maio de 1926 foi promovido a Revolução Nacional. Na Rússia, o golpe bolchevique, de finais de 1917, foi promovido a Revolução de Outubro.
Também os golpes falhados tendem a deixar de o ser. Um líder que derrota um golpe muitas vezes prefere não alardear a seriedade do desafio que enfrentou e, por isso, despromove o sucedido a mero motim, vaga rebelião, simples quartelada. Os golpistas derrotados também têm, muitas vezes, interesse em negar que estar envolvidos numa tentativa de tomar o poder pela força, até para evitar punições mais severas. Fazer análise não é simplesmente aceitar a última coisa que dizem os protagonistas.
Recordo que Prigozhin tinha, até à invasão da Ucrânia, processado por calúnia várias jornalistas ocidentais, negando ser o dono do Grupo Wagner. Putin afirmava: “já disse a respeito do Grupo Wagner que o Estado russo não tem nada a ver com isso”. Esta semana afirmou: “o financiamento de tudo no Grupo Wagner foi totalmente do Estado”. Recordo que Prigozhin recusou falar com Putin e estava imparável segundo o presidente da Bielorrússia que lhe ligou para abrir negociações. Ele declarou durante a tentativa de golpe que a Rússia “terá um novo líder em breve”. Recordo que Putin continua publicamente a falar de traição e declarou que esta era “a mais dura batalha para o futuro” da Rússia. Faria sentido dizer isso se tudo não passasse de um motim sem importância e destinado a falhar? É um facto que Prigozhin comandava dezenas de milhares de veteranos armados, que rapidamente tomou o principal centro de comando militar russo neste momento, e que lançou uma coluna armada até 200 km da capital. Se isto não é uma tentativa de golpe então o que é?
O que é um golpe?
Com todos os grandes fenómenos políticos há debate e controvérsia quanto à sua definição. A tendência é para delimitar os golpes de Estado em função do alvo, dos seus atores e dos meios. A definição mais consensual é que um golpe não pode ficar pela vaga conspiração, tem de passar à fase de uma tentativa aberta por setores das elites civis e/ou militares de mudar pela força o executivo e até o regime político. Distinguem-se de meros motins ou insubordinações militares, pois estes têm objetivos mais limitados – desobedecer a uma ordem específica, protestar pela falta de soldo, má comida, etc. Distinguem-se também de rebeliões armadas, muito mais amplas em termos de número de protagonistas e de duração, basicamente sinónimas de guerras civis ou insurreições.
A definição deve ser clara, mas não pode ser demasiado restritiva. Devemos pensar num golpe de estado como parte de um espectro amplo. E que vai do simples pronunciamento militar com uma exigência de mudança pela hierarquia militar em que “apenas” se ameaça com o uso da força se não for cumprida, até aos golpes militares que resultam em sangrentos confrontos, e que se falharem produzem a fragmentação das forças armadas e se transformam numa guerra civil. Aliás, basta recuar até ao século XIX para termos vários exemplos de golpes, falhados ou não, que visavam forçar uma mudança de política ou de alguns políticos, mas não necessariamente do Chefe de Estado ou do regime. Ainda hoje se discute no Brasil quem e quando se decidiu que o golpe de 1889 seria, afinal, para derrubar a monarquia de D. Pedro II e não apenas o governo do Visconde de Ouro Preto. Também tivemos vários exemplos disso em Portugal durante a Monarquia Constitucional. Mesmo no 28 de maio de 1926 não ficou logo claro se o golpe visava afastar o Presidente da República, Bernardino Machado.
Um estranho desfecho?
Este foi um golpe que apenas falhou in extremis. Se não reconhecermos isso, não iremos perceber devidamente o que sucedeu e as suas implicações. Esta foi a mais séria ameaça ao poder de Putin nos 23 anos desde que assumiu a presidência em 2000. O homem forte da Rússia manda a oposição desarmada de Alexei Nalvny, que apelida de traidor, durante anos para a prisão nos novos Gulags. Mas confrontado com a oposição bem armada de Prigozhin negoceia um compromisso que lhe permite escapar, pelo menos para já, e, provavelmente assim será enquanto este último se mantiver armado.
É verdade que a Prigozhin faltou uma alternativa política claramente formulada a Putin. Não digo de mudança democrática, que não seria credível tendo em conta que ele representa alguns dos piores aspetos do regime. Mas podia ter tentando criar uma plataforma com base no ultranacionalismo russo crítico da evolução da guerra na Ucrânia. Nessa dimensão, pelo menos, o golpe foi claramente improvisado. Putin pode consolar-se com a ideia de que não emergiu uma alternativa clara a ele, ou grandes fraturas no interior da elite do regime. O esforço de eliminação de alternativas é algo que ele levou a cabo muito eficazmente.
Então porque negociou Putin com Prigozhin? Porque não estava seguro de poder conter com tropa suficientemente empenhada em morrer por ele e suficientemente eficaz a matar por ele. E porque terá considerado indispensável acabar rapidamente com este golpe. Era demasiado arriscado para o seu regime, e quanto mais tempo durasse maior seria o risco de afetar seriamente o esforço de guerra na Ucrânia.
As lições
Deixei claro que estou convencido de que esta é uma “batalha perdida”. Os golpes falhados são geralmente ainda mais invisíveis do que os golpes vitoriosos. Provavelmente o golpe falhado de Prigozhin será despromovido a mera revolta. O fundamental é não subestimar a seriedade da ameaça a Putin, seja qual for o nome que lhe demos. Muito é incerto, mas já é claro que esta tentativa de golpe é mais um exemplo do desastroso fracasso de Putin na invasão da Ucrânia. E da dificuldade que ele tem em melhorar a eficácia das suas forças militares sem com isso colocar em questão as bases do seu regime. É difícil o Kremlin promover o mérito e a iniciativa no campo de batalha quando o regime depende da prevalência de redes de lealdade pessoal, de interesses corruptos e da obediência cega ao líder. Também é claro que, em vez de rapidamente fazer cair o regime de Kiev, a invasão russa quase faz cair o próprio regime de Putin.
Isto não quer dizer que a queda de Putin ou a vitória da Ucrânia sejam agora certas ou iminentes. É verdade que o golpe demorou pouco tempo para produzir grande efeitos na frente de batalha. Mas colocou em questão o empenho futuro de dezenas de milhares de veteranos aguerridos, dos poucos que conseguiram alguns avanços nestes meses de combate. Veremos quantos mercenários Wagner irão para a Bielorrússia e o que farão por lá. Veremos se alguns ficarão na Rússia e em que termos se integrarão nas tropas regulares. Mas é difícil que daqui não resulte algum enfraquecimento do potencial bélico russo. O aparente reforço de Shoigu, que veremos se se confirma, também não será muito auspicioso para o desempenho militar russo. Certo também é que Putin ficou, para já, com a sua imagem de autocrata fortemente abalada. Isso pode ser perigoso. Putin precisa de fazer prova de força, interna e externamente. O que significa que pode apostar numa escalada perigosa, a começar pela Ucrânia, talvez pela central nuclear de Zaporizhia. O que devem fazer a Ucrânia e o Ocidente? A principal lição de tudo isto é que Putin só respeita e só negoceia com quem mostra ter força.