Desde o rapto de quase 300 raparigas em Agosto de 2014 que a insurgência no nordeste da Nigéria tem ganho crescente atenção internacional. O início de Janeiro voltou a colocar o país debaixo dos holofotes por força do massacre de 150 a 2000 pessoas (não existe ainda um número definitivo) na localidade de Baga às mãos do grupo que desde 2009 tem mergulhado a região no caos. O Boko Haram é já responsável por mais de dez mil mortes e cerca de um milhão de deslocados, uma crise humanitária que traz memórias da guerra civil. Mas quem, ou que é, o Boko Haram e que implicações traz o grupo para a estabilidade e segurança internacional?

O nordeste da Nigéria é das regiões mais pobres e subdesenvolvidas do país, uma situação causada por décadas de negligência política e corrupção endémica. O grupo surgiu neste contexto. Fundado em 2002 por clérigos muçulmanos, no estado de Borno, como um movimento de protesto social radical, mas não violento, o Boko Haram pretende transformar a Nigéria num estado islâmico “puro” e cortar com aquela que é, segundo os seus líderes, a raiz do subdesenvolvimento nigeriano: a educação ocidental. De facto, a tradução mais comum do nome Boko Haram é “a educação ocidental é proibida”.

Uma demonstração de protesto em 2009 despoletou o primeiro confronto violento entre o grupo e forças de segurança. O líder Mohammed Yusuf, fortemente influenciado pela interpretação Wahabbi do Islão, foi detido durante os confrontos e morto em circunstâncias ainda pouco claras (alegadamente executado pelas forças de segurança). Após um período de adormecimento, o Boko Haram ressurgiu sob a liderança do líder actual, Abubakar Shekau, tendo este introduzido o grupo ao uso de tácticas terroristas e intensificado contactos com redes jihadistas internacionais como a Al-Qaeda. Desde então o Boko Haram tem atacado edifícios governamentais, quartéis de polícia, edifícios religiosos e escolas com o objectivo de enfraquecer o governo.

Com o ataque a Baga, o governo nigeriano perdeu controlo sobre um território que faz fronteira com os Camarões, o Chade e o Níger. Os ganhos territoriais geram receios de que o Boko Haram possa aderir ao jihadismo internacional e expandir operações nos países vizinhos em coordenação com outros grupos activos na região. O aprofundamento de relações com organizações como a Al-Qaeda e o anúncio do estabelecimento de um Estado islâmico no território sob seu controlo são fortes sinais de que tal se esteja a materializar. Caso este cenário se concretize, não será apenas Abuja a estar em risco, mas também toda a África Ocidental, o Sahel, o Magrebe e, por força da proximidade geográfica, a Europa.

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A longa e porosa fronteira com os Camarões e o Níger tem possibilitado aos membros do Boko Haram procurar refúgio, basear operações e arranjar linhas de abastecimento fora do alcance e da jurisdição das forças de segurança nigerianas. Em ambos os países, o receio de que uma postura mais ofensiva resulte num aumento de tensões e numa forte retaliação por parte do grupo tem minado a sua capacidade de resposta. De facto, a recente intensificação das operações antiterrorismo nos Camarões coincidiu com um aumento de ofensivas do Boko Haram em território camaronês, destacando-se alguns ataques a bases militares. Acresce que tanto o Níger como os Camarões têm em mãos as suas próprias insurgências domésticas e recursos limitados, o que reduz a sua capacidade de resposta.

Não obstante, reconhecendo o potencial da ameaça do Boko Haram à estabilidade e segurança regional, os Camarões, o Chade, o Níger e a Nigéria criaram uma força militar conjunta. No entanto, a força multinacional não tem produzido os resultados desejados. Após o ataque a Baga – abrigava um quartel militar composto em parte por membros da coligação –, as autoridades do Níger e do Chade retiraram as suas forças da localidade e recusaram apoiar uma missão para a recuperar, deixando assim o exército nigeriano por sua conta. Importa perguntar por que razão a Nigéria, a maior potência militar em África, não tem sido capaz de eliminar a insurgência, ou pelo menos conter os seus avanços?  

A resiliência do Boko Haram face ao poderio militar nigeriano é em parte justificada pelo alargamento de fontes de financiamento do grupo e pela aproximação ao jihadismo internacional. Parte do seu financiamento provém do vasto mercado de escravos existente na Nigéria e países vizinhos (coloca em contexto as raparigas raptadas em 2014), de resgates de ocidentais, de roubos a bancos e da cobrança de impostos nas zonas sob seu controlo (uma área que é já do tamanho da Eslováquia). O grupo obtém ainda financiamento de organizações na Arábia Saudita e beneficia de ligações com o Movimento para a Unidade e Jihad na África Ocidental (MUJAO) e a Al-Qaeda no Magrebe Islâmico (AQMI). Acresce que os militares nigerianos nem sempre recebem os seus salários e regularmente carecem de provisões, um factor desmoralizador quando confrontados com militantes bem armados e organizados.

A política interna tem também ela um impacto relevante nesta questão. A ascensão de uma coligação política composta pelos maiores partidos da oposição promete tornar as eleições de Fevereiro de 2015 nas mais competitivas na história do país. Ora, para a elite no poder, manter a instabilidade no nordeste, em particular nos estados do Yobe e do Borno (bastiões de apoio da oposição), torna-se numa manobra política com o fim de privar a oposição de apoio eleitoral. No que respeita à oposição, esta pretende capitalizar do descontentamento da população nigeriana em relação à incapacidade do governo em derrotar o Boko Haram. Posto isto, nenhuma das duas principais forças políticas terá interesse na resolução do problema ‘Boko Haram’ no imediato.

Não existem dúvidas de que a indignação internacional perante os massacres cometidos pelo Boko Haram é um desenvolvimento positivo. No entanto, dificilmente será o mediatismo a mudar o rumo dos acontecimentos. Cabe aos líderes e decisores políticos mundiais colocar a ameaça jihadista na Nigéria ao nível de outros grupos da mesma natureza mas com maior mediatismo e interesse estratégico. O conflicto no nordeste da Nigéria não representa, como muitos seguramente pensam, “apenas mais uma guerra entre tantas outras em África”. Ignorar o fenómeno do terrorismo e do extremismo violento na Nigéria é entrar no jogo das organizações jihadistas internacionais. Por outro lado, a estabilidade da maior economia e democracia africana é crucial para o desenvolvimento, aprofundamento democrático e segurança das regiões voláteis da África Ocidental e Central, bem como do Sahel. Em suma, e num jeito utilitarista, garantir a estabilidade da Nigéria será uma abordagem estratégica essencial para todos os que pretendam retirar benefícios do continente que, de acordo com muitos analistas, poderá “reivindicar o século XXI”.

*  Investigador no Instituto Português de Relações Internacionais e Segurança (IPRIS)