Quando se trata do Estado há pequenas peripécias que expõem as suas miudezas bafientas, com seus tácitos rituais e estima pela penumbra e pela consanguinidade. Como nos pesadelos de Franz Kafka, certos dramas do indivíduo remetem para um mal maior e sem rosto que oprime quase sem se fazer notar.

Considere-se este caso: em 2016, M. concorreu sem sucesso ao Startup Simplex com o seu “Prontix”, que propunha QRCodes com metadados nas facturas e uma aplicação móvel para as ler, classificar e integrar automaticamente no e-fatura. Apesar das dezenas de contactos feitos durante os três anos seguintes, inclusive com um alto quadro do Estado, nunca obteve resposta cabal positiva ou negativa. Não obstante, a partir de 2021 os QRCode passaram a constar em todas as facturas e a serem tratados por uma aplicação que encontrou caminho para mais de 500.000 bolsos. E daí nasceu um certo processo no Tribunal Administrativo de Penafiel, porque manda a urbanidade que se dê crédito a quem é devido.

Obedecendo à profecia do advogado, o processo foi alvo de contestação («o Estado tem um departamento só para isso»), e não surpreendeu a argumentação vaga, insinuante e por vezes rasteira. O que surpreendeu foi a celeridade da resposta, pois o mesmo Estado até aí tão sonolento apresentou contestação (entretanto já rebatida na mesma instância) de forma tão rápida e esbaforida que quase que se antecipava ao próprio processo, e ainda lhe sobrou tempo para arrolar nada menos do que nove senhores doutores para potenciais testemunhas. Trata-se de um assomo de eficácia (mas não de eficiência) que contrasta violentamente com a conduta prévia e que faz prova de que o fervor do Estado pelo deferimento tácito não vai além do Simplex Ambiental.

Ainda que pareça um drama menor, este caso é como que uma lanterna largada num poço, revelando por entre lampejos o que é o Estado quando está de pijama e à vontadinha: uma espécie de adamastor medieval envolto em celofane democrático. A saga iniciou-se em 19/02/2016, com uma carta dirigida ao Centro Distrital de Finanças do Porto que naturalmente ficou sem resposta, passou por um concurso público, dezenas de contactos posteriores, etc, e só pela espinhosa via judicial escapou ao limbo dos burocratas. Mas aí chegados, o mesmo Estado que durante três anos se mostrou anémico, anódino e apático, calçou as sapatilhas de corrida e já faz alongamentos.

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Só num Estado convictamente kafkiano é que são precisos nove senhores doutores para mudar uma lâmpada. Uma resposta tão simples como “já temos algo semelhante em vista” ou “é uma ideia com potencial interessante, obrigado” teria poupado milhares de horas e de euros a todos os envolvidos, libertando-os para actividades produtivas. E se tantas vezes voltamos à questão da baixa produtividade nacional é também porque as nossas engrenagens padecem de inúmeras areiazinhas destas.

Infelizmente, a produtividade não é a única vítima deste torpor, pois precisamos de um Estado competente mais do que nunca. As crises somam-se e sucedem-se, da financeira passamos à sanitária, temos às portas uma guerra que pode vir a ser a última, e entretanto a hecatombe climática vai-se desenrolando em câmara-lenta. A normalidade morreu.

Nesta iminente situação perfeitamente adversa é fundamental termos um Estado confiável, capaz de mobilizar e de coordenar. Só assim salvaremos o que for possível salvar. Não nos serve este Estado do salamaleque, do ó-sr.-dr.-isto ó-sr.-dr.-aquilo, e dos generais sentados, que é parteiro do RussiaGate e das listas públicas de espiões, padrinho do faroeste alentejano e da pilhagem ambiental, custódio dos contratos secretos e da opacidade, e lerdo ao ponto de andar anos e anos para conciliar a contabilidade pública com a contabilidade nacional e de se esforçar para fazer do cadastro da propriedade rural recorde do Guiness.

Assim não vamos lá.