Há no imaginário tipicamente português um espécimen que merece figurar entre esses expoentes que são o Tolo, o Adamastor, e os X-Men. Falo do DeputadoX. A sua origin story é plena de aflições, provações e de façanhas alcançáveis apenas por quem a muito custo abdicou do sentido crítico e da coluna vertebral. Contraste-se com o tenrinho [e saudoso] do Vasco Pulido Valente, que logo nos primeiros três meses do seu mandato parlamentar embirrou com os papelinhos coloridos que o partido, sempre solícito, lhe colava aos processos para assim o instruir de como pensar, agir e votar. Não! Não é por tão pouco que o DeputadoX se comove ou demove.

Sim! O DeputadoX diz sim ao chefe. É grato e sempre obedece. O DeputadoX cala quando deve. Só repete quando abre a boca. O DeputadoX come de boca fechada e não solta perdigotos. Sabe dar o nó na gravata e no eleitorado. O DeputadoX domina mal o Inglês, do Português nem se fala, mas mistura ambos com mestria. O DeputadoX fez faculdade, mas não deixou que número, facto ou argumento lhe sujasse o traje com conhecimento.

Dotado de vastos poderes, o DeputadoX é capaz de afastar as marés-negras de novos Prestige ou até de bolar um acordo ortográfico que finalmente resgate os omens à tirania dos hs. Mas é a tramar a vida aos portugueses que ele mais brilha, como se pode ver, entre muitos, muitos exemplos, pelo caso do 3.º artigo do Decreto-Lei n.º 59/2021.

Dita o dito que as empresas (somente as que têm o topete de atender os consumidores por telefone) ficam obrigadas a divulgar o preço das chamadas. Só que, quando o preço depende do tarifário do consumidor — o que acontece com quase todos os números à excepção dos gratuitos e dos “de valor acrescentado” (designação plena de humor) —, as empresas têm de anunciar «Chamada para a rede fixa nacional» ou «Chamada para a rede móvel nacional». Anunciar onde? Nos sites, contratos, facturas, papel timbrado, modelos de email, e, dependendo do entendimento de «comunicação escrita», se calhar até no vinil das lojas e carrinhas.

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Trocado por miúdos, para não descolarmos da capacidade encefálica do DeputadoX, uma empresa que disponibilize ao cliente final um número comum (do tipo 225189070) tem de espalhar palha por todo o lado e pagá-la ao preço do pão-de-ló, pois não sai barato alterar toda a comunicação escrita. E eis que com três sublimes penadas o DeputadoX faz com que milhões de euros mudem de mãos, e, como isto se parece demasiado com brincadeira, a ASAE já começou a contactar algumas empresas no sentido de as multar amigavelmente, na ordem dos milhares de euros.

O referido decreto-lei visa, louvavelmente, aumentar a informação prestada ao consumidor, mas a solução encontrada lembra aquelas epifanias que se operam nas tabernas a partir das 3h da manhã. Bombardear o cidadão com «Chamada para a rede fixa nacional» e «Chamada para a rede móvel nacional», a torto e a direito, juntando mais palha à muita de que já é servido, fá-lo-á desatender aos avisos sonsos que inevitavelmente hão-de surgir, do tipo “Chamada de tarifa fixa (um euro ao minuto)”.

A querer resolver-se o problema, o que claramente não se quis, ter-se-ia obrigado as impolutas operadoras de telecomunicações a alertar os seus clientes quando ligassem para números com tarifário diferente do expectável, dizendo-lhes algo como: “Atenção! Esta chamada terá um custo de X euros por minuto”. Mas acontece que as operadoras são cúmplices no esquema, cabendo-lhes justamente a cobrança das chamadas, e se há coisa que o DeputadoX respeita, além do chefe, são os oligopólios. Em boa consciência prefere onerar as PMEs e testar a pachorra dos cidadãos.

George Bernard Shaw, campeão dos chavões certeiros, dizia que em democracia se troca um pequeno grupo de corruptos designados em ditadura pelo grande número de incompetentes eleitos democraticamente, e atesta-o este e outros prodígios do DeputadoX. Já que a equipa da Federação Portuguesa de Futebol saiu a meio daquela competição execrável, convinha deixarmos de andar a ler lábios ao CR7 e pormos olhinhos no que os miúdos andam a fazer no Parlamento. Se ainda não aprendemos que navegar à bolina sempre nos expõe aos rigores da sorte, continuaremos a reviver as lições do passado por mais novecentos anos.