À medida que vamos desenrolando uma nota de 1 Dólar, vamo-nos apercebendo da quantidade de símbolos e sinais ocultos que se encontram disseminados ao longo de um pedaço de papel amarrotado. Mas à parte da curiosidade e da herança histórica que todo esse simbolismo acarreta, este nada nos diz sobre o atual valor intrínseco do Dólar.

O valor intrínseco de uma moeda advém da sua capacidade de se converter em bens, mais do que qualquer outra. E a questão de fundo que hoje assiste o Dólar é se o seu valor intangível ainda assegura de forma inequívoca essa convertibilidade. Na verdade, por detrás da aparente leveza deste pedaço de papel amarrotado esconde-se um paradoxo inultrapassável, o peso da dívida numa economia em que as suas dinâmicas endógenas já se desequilibraram. De facto, o ritmo da subida da dívida americana supera o crescimento do PIB nominal, fruto de um crescimento do défice orçamental, que em 2020 se estima que ultrapasse os 5%.

Mas para além dos temas endógenos, a evolução das dinâmicas exógenas, também já não são indiferentes para a aferição do risco da convertibilidade do Dólar. Numa altura em que o papel dos Estados Unidos está a perder relevância no comércio internacional e em que a sua política protecionista sibilante não é mais do que o reverso da moeda dessa perda de hegemonia, são cada vez maiores as contradições do papel do Dólar na economia global.

Num dos trabalhos publicados pela economista chefe do FMI, Gita Copinath, sobre as dinâmicas das divisas no comércio internacional, sobressai a evidência da contradição da ainda supremacia do Dólar no comércio internacional. Uma das mais importantes conclusões desse estudo e que contraria muitas das ideias pré-estabelecidas, é que uma valorização de 1% do dólar num ano representa uma redução das trocas comerciais entre o resto do mundo, de 0,6% a 0,8%. A razão é de certa maneira intuitiva, na medida em que, a grande maioria dos preços internacionais dos bens são fixados em dólares, o que significa que quando este se aprecia, todos os restantes países vão ter menor capacidade de comprar bens entre si e naturalmente vão importar menos.

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A questão que na prática este estudo levanta, prende-se com a relevância da necessidade do Dólar na equação do comércio internacional, tanto mais que a dimensão dos volumes subjacentes ao comércio internacional são cada vez mais da responsabilidade de outros países. Para se ter uma ideia, o peso dos mercados emergentes no comércio internacional já supera o peso das economias desenvolvidas. Em termos de paridade de poder de compra (PPC), as economias emergentes passaram a representar 60% da economia global, invertendo integralmente o peso de 40% que detinham face aos 60% dos países desenvolvidos no início década de 90.

Somente a China, a maior economia do mundo (PPC), que representa 18% do PIB mundial e 19% da população mundial, detém uma classe média de cerca de 300 milhões de pessoas e já é o país que mais gasta no turismo internacional, representando cerca de 17% da quota mundial. Depois do sucesso da introdução, há um ano atrás, de futuros sobre o petróleo denominados em Yuans, a China também anunciou no princípio deste ano um plano para transformar a bolsa de Shangai em 2020 num dos principais hubs financeiros, com foco em instrumentos e serviços financeiros em moeda local. Em face desta expressão no comércio internacional, da iniciativa de One Belt One Road e dos vários acordos bilaterais de Swap Currency, que o Banco do Povo da China tem feito com vários Bancos Centrais, a determinação da China em aumentar a quota da sua moeda nas transacções internacionais não deve ser negligenciável, tanto mais que actualmente o Yuan apenas detém uma quota de 2,15% nos pagamentos internacionais via swift.

Para além dos temas endógenos americanos que assolam o Dólar e da ânsia do Yuan em ganhar protagonismo internacional, o Euro, à beira do desenlace do Brexit, pode também recuperar parte do peso que perdeu como reserva de valor. Desde a crise soberana, o Euro perdeu cerca de 25% do peso que detinha no total de reservas detidas internacionalmente. Passada quase uma década sobre o início da crise soberana europeia, é de registar que as tendências da dívida e do défice na Europa vão exactamente no sentido oposto com aquilo que se passa no seio da economia americana, mesmo tendo em conta as vicissitudes italianas… Por vezes, ainda nos esquecemos que o Euro já não é um projeto, tem duas décadas de existência!

Por fim, ainda acresce uma referência sobre uma nova realidade que está para além das tendências endógenas e exógenas que se têm vincado nos últimos anos. Existe uma realidade global digital que floresce e que em certa extensão, também é um sintoma da perda do virtuosismo do Dólar. No limite o eventual sucesso das moedas encriptadas, vai-se resumir à credibilidade com que estas assegurarem a sua convertibilidade em bens e serviços. No futuro, tendencialmente estas moedas irão acabar por se implementar melhor, nos países e nas regiões que promovam e explorem ativamente o comércio de bens e serviços entre diferentes fronteiras.

Mas para que tudo isto se torne numa evidência irrefutável, precisávamos de um sinal que confirmasse a nossa exata localização, o ponto onde nos encontramos face ao Dólar. Esse sinal chegou na semana passada, através do anúncio marcante de uma reversão da política monetária americana.

Depois da Reserva Federal Americana (FED), ter andado a correr desenfreadamente “num quarto escuro” ao longo do último ano, pelo pé frio do seu presidente, Jerome Powell, subindo as taxas de juro de forma displicente e prepotente, não deixa também de ser marcante a forma como a FED mudou substancialmente a sua política monetária num curto espaço de tempo. Independentemente de sobressair uma questão de credibilidade, temos de reconhecer que neste caso e contrariamente ao saber popular, foi muito melhor “(pior)a emenda que o soneto”. Na prática, a FED devolveu a flexibilidade necessária à sua política monetária para assegurar a longevidade do atual ciclo económico global, o que implicitamente é um reconhecimento expresso do desejo secreto de um Dólar mais débil.

Neste contexto e dadas as atuais circunstâncias económicas, financeiras, monetárias, geopolíticas e porque não digitais, torna-se evidente que chegámos ao ponto de vertigem do Dólar, mas mais importante do que isso, evitem-no se puderem…

Economista