Tendo a cigarra em cantigas, passado todo o verão, achou-se em penúria extrema, na tormentosa estação”.
Fábula da Cigarra e da Formiga, de La Fontaine, na tradução de Bocage.

No sábado tiveram lugar várias manifestações em diversos pontos do país para protestar contra a crescente crise imobiliária. As manifestações visaram, na linha do que vai sendo habitual, um objetivo único: tentar capturar um problema que é transversal para o património político da extrema-esquerda. As manifestações seguiram o guião esgotado da guerrilha urbana, com encenações que procuram projetar a sensação de que há caos e confronto, e que, fruto da exploração capitalista, se estará na iminência de uma rutura social. Se as táticas de confronto e as estéticas subjacentes, empregadas por esses grupos de extrema-esquerda (onde não faltam agitadores profissionais vindos de fora de Portugal) causam alguma atração e saudosismo em alguns segmentos da sociedade, ajudam a reforçar a atenção para o problema, importa deixar claro que, na prática, oferecem soluções limitadas. É que enfrentar a crise imobiliária requer uma abordagem mais matizada e baseada na racionalidade económica que considere tanto os fatores de oferta quanto os da procura, do que debitar frases de ordem contra o governo, as alterações climáticas, a opressão capitalista, ou afirmar as inúmeras alteridades que se fizeram representar nas diversas marchas.

Oito anos depois da inauguração da Geringonça, pedir aos portugueses que acreditem nestas forças políticas para resolver crises profundas é um exercício de um enorme cinismo político. Há vários anos que os mercados imobiliários davam sinais de alerta, e foram muitos os que foram enunciando a crise que hoje se assiste. Não é à toa que há inúmeros autarcas indignados com a atitude do governo, como é o caso de Rui Moreira, presidente do município do Porto, que há vários anos procura, junto do poder central, obter mudanças legislativas e apoios financeiros indispensáveis para dar solução às necessidades crescentes, sem qualquer resposta à altura.

Ora, por tudo isto, o pacote legislativo lançado por este governo e as reações da extrema-esquerda soam a falso, pois soluções para a crise imobiliária deveriam ter sido pensadas e lançadas há vários anos. Em vez disso, desde que assumiram o poder que António Costa e os seus ex-amigos do Bloco de Esquerda e do PCP foram embalando os eleitores com uma forma de governar assente numa falsa sensação de segurança e prosperidade, atrasando reformas tão necessárias. Na linha da fábula da cigarra e da formiga, a inação e, em algumas políticas públicas, as escolhas assumidas (como é o caso da política fiscal, ou a tragédia que é a política de infraestruturas e transportes), exacerbaram a crise imobiliária, deixando as classes baixas e médias asfixiadas no acesso à habitação face ao aumento dos preços, a falta de investimento público e a estagnação dos salários. É por isso difícil não achar que as medidas lançadas pelo Governo e as manifestações ruidosas a que assistimos nas ruas das nossas cidades são apenas uma tentativa de mitigar danos políticos, em vez de genuinamente visarem a resolução da crise.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Se queremos, por isso, resolver em definitivo grande parte dos problemas estruturais que enfrentamos, parte da solução passa por nos afastarmos das teses socialistas ou esquerdistas, lidando com estas questões de uma forma social e economicamente eficaz, mas em consensos que respeitem os princípios básicos de uma economia de mercado.

A crise atual no acesso à habitação não se resolve atacando a propriedade, o alojamento local, ou travando o investimento que tem vindo a ser feito por estrangeiros de segmentos mais altos. O que é necessário é ampliar a oferta nos segmentos onde não há oferta, e não destruir riqueza tão essencial para um país cada vez mais deprimente e menos atrativo. Há uma crise porque não há casas para as classes médias e baixas, e também porque alguns segmentos da população não ganham o suficiente para pagarem uma renda. Há, por isso, que tomar as medidas certas que ajudem a equilibrar as fragilidades existentes, quer na oferta, quer na procura, evitando que, por cegueira ideológica, “se deite fora o bebé com a água do banho”.

Assim, e do lado da oferta, os governos devem focar-se em quatro medidas principais para incentivar o desenvolvimento e aumentar a oferta habitacional:

  • Promover a confiança dos investidores, criando um ambiente económico estável e fornecendo incentivos para que haja investimentos privados no setor imobiliário, garantindo que os investidores se sentem seguros quanto às perspetivas de longo prazo de seus investimentos. Um quadro legal que valorize a propriedade, transparente e previsível, é essencial para que haja confiança junto de quem investe.
  • Simplificar processos burocráticos e de licenciamento, diminuindo a burocracia. Reduzir o tempo e os custos associados à obtenção de licenças de construção é essencial para atrair quem investe, mas não só: cada ano que um projeto se atrasa, traduz-se num custo acrescido por imobilização do capital investido que, sem retorno, faz disparar os preços.
  • Reformar a tributação, não apenas reduzindo a carga fiscal, mas sobretudo dando maior racionalidade económica à tributação. Seria importante terminar de vez com o imposto por transação (“IMT”), imposto que provoca uma pressão significativa sobre os preços em imóveis com maior rotação, retirando flexibilidade e liquidez ao mercado e às famílias para se ajustarem ao longo da vida, dando antes maior ênfase aos impostos e taxas sobre a manutenção dos imóveis, algo que pressiona, ou à venda, ou a rentabilização dos imóveis por parte dos seus proprietários.
  • Investir em infraestruturas e novas centralidades, pois não é viável que todos vivamos nos centros das cidades. A crise na habitação é o sintoma visível do falhanço dos sucessivos governos em políticas estruturantes como o transporte público, a saúde, a educação, o acesso a creches e lares e a reforma da administração pública num tempo tão digital, eixos essenciais para que existam novas centralidades.

Do lado da procura, os governos devem concentrar-se em duas medidas principais para tornar a habitação mais acessível às classes médias e outros grupos demográficos que lutam por uma casa:

  • Reduzir a carga fiscal sobre as classes médias. Sem classes médias, não há crescimento económico e estabilidade social; nos últimos anos, assistimos a uma proximidade cada vez maior entre o rendimento médio e o rendimento mínimo, o que mostra que estamos a destruir aceleradamente as classes médias. A melhor forma de aumentar o poder de compra e fortalecer as classes médias não é, num cenário inflacionista, a subida de salários, embora tal tenha progressivamente de ocorrer, mas sim a diminuição de impostos sobre o rendimento. Desagravar fiscalmente as classes médias e médias-altas tem, além do mais (como se viu no caso do regime fiscal dos residentes não habituais) o condão de atrair e reter em Portugal as pessoas mais válidas que permitem criar a riqueza de que o país necessita para ter a prazo crescimento económico, coesão social, saúde e educação.
  • Alinhar incentivos para investidores e proprietários, criando uma estrutura regulatória que equilibre os interesses de todos, garantindo que os proprietários possam obter um retorno razoável de seus investimentos apesar de praticarem arrendamentos acessíveis. Não faltam fundos e investidores que estariam disponíveis para investir em Portugal em programas de renda acessível com taxas de retorno com um prémio baixo face à dívida pública, se o risco associado for reduzido, e se houver uma repartição de custos, repercutíveis no preço (v.g, entrega de imóveis devolutos do Estado para exploração privada, comparticipação em infraestruturas, isenção de taxas e emolumentos, ou entrega de terrenos para urbanização em condições favoráveis).

Enquanto o governo tenta recuperar o tempo perdido, e a extrema-esquerda o seu espaço político, é importante superar o caos e o confronto, resistir à tentação de recorrer a medidas bolivarianas e de asfixia dos mercados que servem apenas para destruir o pouco que ainda sobra das nossas classes médias. Só assim o país poderá alcançar mudanças significativas e criar um futuro melhor para todos os que por cá queiram habitar.