Quando começa Setembro, começo a ler a Bíblia do princípio. Ontem li o Génesis de fio a pavio. Caramba, já tenho este hábito há anos e não há modo de me cansar: que texto! São tantos os episódios que, já sendo meus desde a infância, me arrebatam que até me custa escolher um só. Mas vou pelo do reencontro de Jacob e Esaú.

Jacob tornou-se uma personagem bíblica especial para mim. Há uns anos li um sermão do Frederick Buechner e apercebi-me do óbvio: o Jacob sou eu. E sou literalmente eu porque Tiago é Jacob. Assim muito rapidamente, o hebraico Jacob deu o latim Jacobus, o Sant’Jacobus dá o Santiago, e daí resume-se o muito português Tiago. Jacob sou eu também porque Jacob é o meu nome.

Para quem cresce numa Igreja Evangélica é habitual receber na infância postais com o nosso nome nas línguas bíblicas originais, explicando o seu sentido. Não sei que idade teria mas lembro-me de ganhar um, em azul, creio, especificando que no hebraico Tiago significava “suplantador”. Suplantador é a versão politicamente correcta de um nome que também pode significar usurpador. Apercebi-me disto mais na maturidade, que grande parte das suplantações benignas atribuídas aos Tiagos também podem ser traduzidas, numa interpretação menos solar, por aldrabices, truques ou manhas. O Tiago suplantador era, afinal, também o Tiago sempre pronto a querer mais do que tinha.

Por volta dos quarenta anos descobri-me assim, através de uma época mais complicada e daquele sermão certeiro do Frederick Buechner: sou Jacob, descontente, sempre insatisfeito e, por isso, engatilhado a tirar o melhor proveito possível das circunstâncias à minha volta. Para ser sincero, nunca me treinei para isso, nunca tomei uma decisão consciente para querer fazer tudo acerca de mim. Simplesmente nasci assim, tornei-me assim, sei lá. Suplantando vou, muito provavelmente à custa de querer para mim o que em mim não encontrei. Usurpar está-me na massa do sangue.

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O Jacob da Bíblia é o manual dos manhosos. Uma tradução moderna conta assim a reacção de Rebeca, grávida dele e de Esaú: “dois gémeos lutavam um contra o outro no seu ventre e ela exclamou: “Foi realmente para isto que eu fiquei grávida?” Foi então consultar o Senhor e ele respondeu-lhe: “trazes dentro de ti dois povos””. A gravidez de Jacob e Esaú não é uma gravidez, é uma guerra. Isto não significa que sempre que há gémeos, há confusão na barriga da mãe, mas é, no mínimo, sugestivo. Jacob é um gémeo e eu, adivinhem lá, gémeo sou.

Graças a Deus nunca tive na Sara, a minha irmã gémea, um inimigo. Pelo contrário. Apesar de já não vivermos juntos há 22 anos (ela casou em 2001 e eu casei em 2002), cada vez que penso mais nela sinto que, para gémeos, a autonomia um do outro nunca bate inteiramente certo. Há uma parte de mim que continua a estranhar eu ter de ser independente da minha irmã. Ser gémeos é um negócio à parte.

O Jacob da Bíblia cresce a tirar vantagem do seu irmão Esaú. O facto de Jacob ser mais novo só o aguça para sacar a Esaú os privilégios de mais velho. Tira-lhe a primogenitura no prato de lentilhas e tira-lhe a bênção no leito de morte do pai deles, Isaque. Esaú fica para morrer com o escroque que Jacob se revela e promete matá-lo. A mãe Rebeca, que tinha culpas no cartório por preferir Jacob, avisa-o para fugir. E fugido se torna Jacob, o manhoso. Mas até fora da sua terra arranja maneira de enriquecer. Os anos passam e aumenta-lhe a riqueza e a família. Como costuma acontecer quando nos cresce a riqueza e a família (só tenho experiência no segundo caso), cresce também a probabilidade de confusão. Ao conquistar a independência do seu sogro, Labão, Jacob precisa de atravessar a região onde tinha ficado o seu gémeo. E Esaú, figura distante durante os últimos anos, prepara-se para ir ao encontro de Jacob. Jacob pensa: é desta que não arranjo manha para me safar.

Na noite antes desse reencontro assustador, Jacob luta com um anjo. É um episódio estranho. No fundo, Jacob luta com Deus. E a verdade é que Deus, por incrível que pareça, não consegue levar a melhor contra aquela criatura eternamente insatisfeita que Jacob é. Magoa-o na coxa, é certo, mas o golpe mais eficaz que lhe desfere é doutro calibre: “de agora em diante o teu nome já não é Jacob mas Israel, porque lutaste contra Deus e contra os homens e saíste vencedor”. De viciados em vitória Deus não tira uma vitória, Deus tira uma vida nova. E bem que Jacob tentou saber o nome de Deus, mas foi Deus que deu um novo nome a Jacob. A luta que Deus não ganha ao manhoso serve para ensinar o manhoso a ter vida além do seu dom constante de ganhar—é assim que se dá um curto-circuito a um suplantador.

E chega o dia do grande reencontro. Jacob, talvez pela primeira vez na sua vida, preparou-se para perder. Terá pensado que desta vez viria mesmo a justa vingança do seu irmão Esaú e não teria como se safar. “Antes de chegar junto do seu irmão, inclinou-se até ao chão sete vezes. Esaú correu ao seu encontro e, atirando-se-lhe ao pescoço, abraçou-o e beijou-o e ambos choraram de alegria.” Desaprendi a ler estas linhas de olhos secos. “Voltar a ver o teu rosto foi como poder contemplar o rosto de Deus”. Reparem nisto: na noite anterior Jacob luta com Deus, na manhã seguinte reconcilia-se com o irmão. O manhoso julgava que a porrada vinha do irmão que enganou, mas veio do Criador que não pode enganar.

A verdade é que à porrada nada se ganha—nem Deus quis ganhar à porrada com Jacob. Com o perdão a conversa é outra. O perdão é a possibilidade do manhoso deixar de ser manhoso. O perdão é a possibilidade do insatisfeito se poder satisfazer. O que Jacob não sabia é que seria no rosto daquele que enganou que, através do perdão, quase veria o rosto que aqui ainda não conseguimos ver—o de Deus. É daqueles que derrotámos com a nossa esperteza que virá a maior graça. Quem perde por nossa causa é quem nos mostra que a nossa maior vitória não é a astúcia, é o arrependimento.

Todos os Tiagos podem ter uma vida além das vitórias que se habituaram a amealhar. Esta é a melhor coisa que me é dada, e relembrada, sempre que regresso ao meu querido Jacob.