Irrompeu nas notícias como uma grande inovação. Chegou a “habitação vitalícia”. Uma surpresa. “O governo quer que a partir de agora, o direito vitalício à habitação seja acessível para todos”. Dizem-nos que “não é compra, não é arrendamento, é um direito real (…) poderemos residir numa mesma casa durante toda a vida”. “Um novo modelo de contrato de habitação”.

Após mais de 30 anos a lidar com estas coisas do alojamento, a estudar o que por esse mundo se produz e conhecendo as experiências dos países mais avançados nas políticas de habitação, como foi possível não ter descoberto ou discernido semelhante genialidade?

Afinal, com uma pequena caução de 10 a 20% do valor do imóvel, mais uma prestação mensal e umas contas feitas com base nuns índices do INE, o governo anuncia-nos uma solução simplesmente paradisíaca. E não o faz por menos: se quisermos, será vitalícia!

Vejamos.

Arranjamos uma casa baratinha, propriedade privada, cujo valor por metro quadrado segundo o governo, tendo em conta a mediana das últimas estatísticas do INE anda pelos 2.877€ em Lisboa e pelos 1.525€ no Porto. Se a casa tiver uns 80 metros quadrados custará em Lisboa ou no Porto, respetivamente 230.160€ ou 122.000€.

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Seguidamente, aplicamos-lhe os 10 a 20% da caução ou seja, no Porto precisaremos entre 12 e 24 mil euros e em Lisboa entre 23 e 46 mil euros. Este será o valor que o morador terá que dar como entrada.

Depois dizem-nos que será necessário pagar uma prestação mensal, na prática uma renda, mas aqui nem sequer avançam um valor. É evidente, que será uma renda igual ou superior às que se praticam.

Seguem-se as responsabilidades com o condomínio que ficam para o proprietário. Ao morador, surpreendentemente, caberá o pagamento do IMI.

Finalmente informam-nos que o proprietário não poderá rescindir o contrato e que fica obrigado a restituir a totalidade da caução se o morador o cancelar antes de decorrido o período de 10 anos.

Perdoem-me a ingenuidade, mas a pergunta impõe-se: como é que uma solução tão genial e inovadora nunca se viu em parte alguma do mundo?

A resposta é simples: porque não é viável, porque não funciona e é um completo disparate.

O governo inventou um “novo modelo” que ignora algumas questões básicas.

A primeira prende-se com a incerteza da duração do contrato que decorre, como é natural, das vicissitudes da vida. Pretender imobilizar através da caução uma quantia que para muitas famílias representa o rendimento de muitos meses de trabalho, sem que isso se traduza num investimento e num bem tangível, é uma tolice.

Em segundo lugar, esperar que um proprietário imobilize uma habitação durante décadas, sem que dela possa dispor, nomeadamente caso a queira vender livre de ónus ou encargos, congelando o seu valor que ficará preso a um contrato que durará tantos anos quanto o resultado incerto de uma roleta russa, é simplesmente patético.

Segue-se a insegurança do negócio. Qual é a garantia que o morador tem de que recebe de imediato a totalidade da caução que pagou caso termine o contrato? Quem conhece a lentidão da nossa justiça e a frequência dos calotes, só entra neste negócio se for incauto.

Depois, surge aquela ideia peregrina de responsabilizar o morador pelo pagamento do IMI, criando uma inversão de papéis perante o fisco, absolutamente inédita. Mas quando ouvimos falar do IMI, que outros impostos ou taxas estarão escondidos neste presente? Por exemplo, dada a nossa tradicional volatilidade fiscal, quem pagaria a taxa de proteção civil que felizmente não vingou?

Finalmente o governo, em mais um acesso de generosidade, anuncia que este “novo modelo” é para TODOS.

Se estamos a falar de famílias que não dispõem de rendimentos para suportar as rendas que presentemente se praticam em Lisboa e no Porto, mesmo as que supostamente serão “acessíveis”, onde é que essas famílias têm o capital necessário para pagar a caução? A resposta é óbvia: não têm. E não haverá instituição bancária que financiará este valor, pois não existe um bem que sirva de garantia e rendimentos que assegurem o seu reembolso.

Mas se estamos a falar de famílias que têm rendimentos para pagar estas rendas, então este “novo modelo” de nada lhes serve, porque mais facilmente arrendarão ou comprarão casa, sem terem que entrar numa aventura onde têm que investir em algo que é intangível.

Então porque é que o governo nos anuncia esta maravilha que objetivamente não terá a adesão de uma única família?

A resposta é igualmente simples: porque a gestão do ciclo político-eleitoral está a chegar ao fim. Após a sucessão de fracassos desta política de habitação, tornou-se irrelevante que os anúncios se traduzam em resultados. O que importa é publicitar muitas medidas, por mais disparatadas que sejam, criando a ideia que estão a resolver os problemas quando, afinal, fica tudo na mesma e não produzem uma única casa.

Por este caminho, um destes dias, ainda seremos surpreendidos com o anúncio de que as agências funerárias entraram no negócio e depois da “habitação vitalícia”, agora oferecem-nos a “casa para a vida eterna”.

Arquitecto, presidente do Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana de 2012 a 2017