Não queria estar a maçar ninguém com histórias antigas. Mas, para nosso coletivo desconsolo, as indignações instantâneas contra Marcelo Rebelo de Sousa esta semana aconselham e obrigam a falar sobre o passado. Há dias, o Presidente da República estava a tentar explicar a jornalistas estrangeiros o que se passa na política portuguesa e, nesse esforço, afirmou que Luís Montenegro “faz lembrar um bocado o PSD profundo” — que “era sobretudo o norte e o centro-norte” — porque “tem o tempo do país rural, embora urbanizado” e vem de “um país profundo, urbano com comportamentos rurais”. Seguiu-se, como sempre, aquela reação furibunda que, nos dias de hoje, começa nas redes sociais e, em menos de um minuto, passa para os jornais, salta para a televisão e aterra em todos os lares da pátria sem que, pelo caminho, alguém ache sensato parar para pensar se as coisas são realmente assim.
Para evitar precipitações neste caso, talvez seja útil lembrar o que se passou em Portugal no começo de 1978. Nessa altura, o PSD estava em mais uma das suas habituais ebulições. Francisco Sá Carneiro queria colocar o PSD firmemente na oposição ao PS de Mário Soares, que estava no governo, e a Ramalho Eanes, que ocupava a Presidência da República. Mas ficara em minoria na direção do partido e sentia-se o alvo de uma campanha que pretendia primeiro, a quente, humilhá-lo; e depois, com frieza, “aniquilá-lo”. Farto de ser “sistematicamente vencido” nas votações internas da direção, Sá Carneiro teve dois gestos dramáticos em simultâneo: demitiu-se do cargo de presidente do PSD e demitiu-se mesmo do partido, entregando o cartão de militante. Na iminência de uma ruptura, foi possível, a custo, chegar a um acordo que, na verdade, era um impasse. Sá Carneiro aceitou continuar no PSD, mas o partido foi entregue a uma direção interina liderada por Sousa Franco.
Alguns dias depois, no meio daquilo que foi descrito na época como um “psicodrama”, entrou em cena outra personagem: Marcelo Rebelo de Sousa. Como membro da Mesa do Congresso do PSD que se realizaria em janeiro de 1978, Marcelo tentou percorrer o caminho estreito entre as duas fações. Sozinho, numa sala gelada do Cine-Teatro Vale Formoso, no Porto, escreveu uma moção que pretendia agradar a Sá Carneiro e a Sousa Franco. Convencido de que tinha conseguido, levou o documento a votos no congresso. Primeiro, pediu que levantassem o braço os congressistas que votavam contra aquela proposta de moção — ninguém levantou. Depois, pediu que levantassem o braço os congressistas que se abstinham — ninguém levantou. Sentindo-se vitorioso e aliviado, Marcelo Rebelo de Sousa declarou: “A proposta foi aprovada por unanimidade”. Mas havia um problema. Segundos depois, segredaram-lhe ao ouvido que estava enganado: o jovem que viria a ser Presidente da República encontrava-se sentado de frente para a plateia, por isso não vira Sá Carneiro, que estava atrás dele, a levantar o braço durante as votações. “Eu abstive-me”, disse o fundador do PSD. Seguiu-se uma revolta dos congressistas, que apoiavam esmagadoramente Sá Carneiro e sentiram que tinham sido levados a aprovar aquela moção por Sousa Franco e por Marcelo Rebelo de Sousa. Foi um dos momentos mais traumáticos da história do PSD e só se resolveria bem mais tarde, com a saída do partido de vários dirigentes.
O que é que tudo isto tem a ver connosco hoje, em 2024? Alguma coisa. Porque uma das principais razões que levaram Sá Carneiro a romper com os dirigentes provisórios do partido naquele momento foi uma entrevista dada por Sousa Franco à revista Opção em janeiro de 1978. Nela, expunha a teoria de que no PSD havia duas “tendências”. A primeira tinha “uma base predominantemente rural” e era “dominante em termos quantitativos”; a segunda era “urbana” e “mais representada em termos qualitativos”. Sousa Franco entendia que ele próprio liderava os “urbanos”, que eram “temperamentalmente mais moderados”. Já Sá Carneiro, segundo ele, “polarizava a adesão de uma boa parte de massas rurais do Norte e do Centro do país”. Ao ler isto, Francisco Sá Carneiro sentiu “surpresa e estranheza”. Não por se sentir insultado com o uso da palavra “rural”, mas por entender, simplesmente, que havia uma tentativa de dividir o partido em blocos, o que poderia ser a antecâmara de uma cisão. Intuindo esse perigo, deu início à série de acontecimentos que terminariam com Marcelo Rebelo de Sousa a ser apupado no congresso do Cine-Teatro Vale Formoso.
Era tudo isto que, com menos detalhes, Marcelo estava a lembrar na conversa com os jornalistas estrangeiros. Na tentativa de lhes explicar o que é o PSD, usou os termos “urbano” e “rural”, que ficaram famosos no partido por causa desta divisão histórica — e, não por acaso, reproduziu quase letra por letra as palavras ditas por Sousa Franco há 46 anos. Mas hoje em dia, inevitavelmente, a atividade que consiste em tentar compreender o que nos dizem transformou-se num incómodo e numa maçada. É mais fácil pegar numa palavra, tirá-la do contexto e da história e transformá-la num insulto.
Marcelo pode, evidentemente, ser atacado por muitas coisas que disse naquele jantar com a imprensa estrangeira — desde as considerações sobre o suposto comportamento “maquiavélico” da procuradora-geral da República até à originalidade de prometer reparações às antigas colónias sem, pelo menos, consultar o governo do momento. Mas achar que o Presidente da República ia transformar a palavra “rural” num insulto ao primeiro-ministro recém-eleito e usar esse insulto para fazer conversa de circunstância com jornalistas estrangeiros é, ao mesmo tempo, inverosímil e ilógico. Só que, atualmente, a lógica e a verosimilhança são irrelevantes para o debate público. Estamos assim e tão cedo daqui não vamos sair.