Um dos editoriais mais famosos da imprensa portuguesa começava assim: “Deus não dorme: pôs a lei da alternância a funcionar”. O texto, publicado pelo diretor do Diário de Notícias, Mário Mesquita, a 7 de outubro de 1985, tinha um triplo objetivo. O primeiro, e menos importante, era assinalar a vitória do PSD do recém-chegado Aníbal Cavaco Silva — Mário Mesquita não sabia, nem tinha como saber, mas aquela maioria relativa transformar-se-ia pouco tempo depois numa maioria absoluta e, a seguir, numa maioria absoluta dupla. O segundo objetivo do artigo, mal disfarçado, era comemorar a entrada do PRD eanista no Parlamento como terceiro partido mais votado — Mário Mesquita iria depois apoiar a candidatura de Salgado Zenha à Presidência, numa tentativa de derrubar Mário Soares da liderança da esquerda. O terceiro objetivo deste editorial era dar forma e propósito à derrota do PS, que liderara o governo do Bloco Central, uma aliança que juntara os socialistas e os social-democratas numa espécie de governo de salvação nacional com Mário Soares como um primeiro-ministro de austeridade.

Ao fazer a autópsia do PS, Mário Mesquita espetava a faca com prazer. O resultado, com os socialistas a perderem 800 mil votos, era uma “rejeição” que aparecia como um castigo “nítido”. O PS tinha usado “a manipulação propagandística” e tinha cedido ao “primado do show business” — mas essas duas coisas, explicava o diretor do DN, “não bastaram para apagar da memória dos eleitores a experiência governamental mais próxima”. Havia mais e havia pior: segundo o afiado Mário Mesquita, o PS fora “vítima de si próprio, dos seus vícios congénitos no exercício da governação e do estilo de alguns dos seus dirigentes”.

Em 1985, com menos de dez anos de eleições em democracia, o retrato do PS no poder já estava feito: “manipulação propagandística”, “primado do show business”, “vícios congénitos no exercício da governação”. Há uma razão para este editorial ter ficado na História. É que quem o escreveu não foi um “fascista”, nem um prócere da “direita”, nem um “cavaquista”, nem um “neoliberal de casino”: foi um fundador do PS e deputado constituinte do partido. A mensagem subliminar era: tendo sido “um deles”, o autor do texto sabia do que falava.

Mário Mesquita decidiu pôr em título a primeira parte da frase inicial — “Deus não dorme”. Mas o que torna o texto relevante neste final de 2023 é a segunda parte dessa frase — “Pôs a lei da alternância a funcionar”. Um dos argumentos que vamos ouvir insistentemente na campanha eleitoral que nos levará até 10 de março é que Deus deveria repetir o truque porque os socialistas estão há demasiado tempo no poder.

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Aliás, estão há tanto tempo no poder que já funcionam, em simultâneo, como governo e oposição. Nestes últimos nove anos, o PS já foi a favor da geringonça, já foi contra a geringonça e agora é novamente a favor da geringonça. Já foi contra a recuperação do tempo de serviço dos professores e agora é a favor da recuperação do tempo de serviço dos professores. Já foi a favor da nacionalização parcial da TAP, já foi a favor da nacionalização total da TAP, já foi a favor da reprivatização total da TAP e agora é a favor da reprivatização parcial da TAP. Já foi a favor de uma redução rápida da dívida pública e agora é a favor da redução lenta da dívida pública. Com o passar do tempo, o PS tornou-se especialista em dar voltas de 360 graus: gira e faz reviravoltas, mas no final acaba sempre no mesmo sítio — e esse sítio é o poder.

Para preservar a sua condição de “partido natural de governo”, o PS aderiu ao marxismo, versão Groucho: quando os eleitores dão sinais de já não gostarem das ideias do partido, os socialistas arranjam outras, mesmo que estas sejam contraditórias com as ideias anteriores. Melhor: especialmente se forem contraditórias com as ideias anteriores.

Quando um regime começa e acaba num mesmo partido, surge um impasse, a que alguns chamarão pântano. Foi para resolver problemas como esse que, quando estava acordado, Deus inventou a lei da alternância. Agora, só é preciso pô-la a funcionar.