E se … a noite não viesse de sobressalto com o coração a explodir-lhe na boca e a arrebatá-la do sono ténue e aveludado. E se … na noite que tombava cedo no inverno, houvesse ainda uma réstia de esperança e paz para num fechar de olhos, nos breves segundos em que o tempo congela, talvez aí, nesse mundo parado, estático, frio, talvez aí conseguisse esquecer …

Larysa Melnyk nos seus 38 anos há muito que não sabia o que era fechar os olhos e suspender o mundo. Não sabia o que isso era, nem que fosse por breves instantes. Precisava de uma pausa, precisava de pensar e não conseguia. Tinha saudades da meninice e da doçura lenta e pastosa, terminada em Fevereiro de 2022. Os seus filhos, Oleksandr e Olesia,  de 12 e 8 anos, ao contrário dela, nunca teriam infância para recordar. Para as crianças, e também para ela, o aconchego de mãe foi curto e com fim demasiado abrupto. Foi rápida a transição do ninho e do colo para este mundo de escassez, restrição e morte. Como se sentia só! Aquelas crianças eram a sua razão de vida, mas não eram a única. O seu ódio aos russos, esse aumentava a cada dia, a cada noite, a cada instante. Tinha crescido e era desse monstro que se alimentava. Era nele que procurava a esperança para o amanhã.

E se … na escuridão da noite, quando tentava adormecer os filhos, por grande que fosse o ódio, e muita a resiliência, os olhos sempre se embargavam quando as crianças lhe pediam para dar um último beijo ao pai. Larysa procurava por entre memórias e as poucas fotos que lhe sobravam a imagem já gasta do seu amor. Mykola tinha morrido há 5 anos na defesa de Kiev. Larysa nunca tinha conseguido reaver o seu corpo. Não tinha um canto, uma placa, uma lapide onde pudesse falar com a metade perdida de si, mas aquele pedaço de papel já gasto e de cantos roídos, esse sempre lhe trazia conforto. Era como ter a alma nas mãos. Aquele pedaço de papel era o objeto da sua peregrinação, parte da sua força. Sem ele, sem a memória de Mykola tinha medo de não conseguir odiar.

E se … ainda houvesse justiça. O sacrifício de Mykola não podia ter sido em vão. Ela, os seus filhos, e todos os sobreviventes iriam vingar Mykola e os milhares de mortos que a história recente da Ucrânia tinha registado, nem que para isso tivessem de ser convocados e regressarem das profundezas de Hades. Estava escrito, o agressor nunca poderia ser perdoado.

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E se … a fome continuasse. A debilidade das crianças aterrorizava Larysa. Desde que o confinamento imposto pelos russos se iniciara que os alimentos eram cada vez mais escassos e difíceis de obter. As calorias indispensáveis às crianças eram cada vez mais raras. A ela, Larysa bastava-lhe o ódio que lhe crescia dentro. Para ela era alimento suficiente. Nutria-se das mortes a que ia assistindo, dos corpos despedaçados, das referências que iam desaparecendo, e da memória dos que não tinha chorado que bastasse. Ela nutria-se de ódio, mas as crianças como reagiriam? O ódio que dela emanava era como leite maligno que as transformavam em monstros mórbidos e aberrantes. As cabeças e o abdómen cresciam diariamente, cresciam em modo disforme. E se o abdómen sugeria vagamente algum excesso, os membros magros, finos, impotentes, e os olhos, esses olhos grandes, proeminentes, de olhar fixo num misto de desânimo e conformismo, era, para quem os observasse um vislumbre do sofrimento e tormento que a todos soterrava.

E se … os mortos não parassem de aumentar. Como seria possível chorá-los todos? Se ao menos parassem um pouco… E se … Ivanna Svitlychna, Oleksandr Kovalenko, Olena Zelenska, Dmytro Pavlyuk, Sofiia Kravchuk, Andriy Shevchenko, Kateryna Bondarenko, Taras Hryhorovych, Yaryna Fedorova, e tantos outros com os corpos ainda quentes … E se … fosse possível ter lágrimas que os chorassem todos. Se fosse possível …

De início a solidariedade entre os sobreviventes sugeria uma condição inata. Nos meses após a explosão na central de Zaporizhia os russos expulsaram de suas casas cerca de 13 milhões de ucranianos que realojaram entre Lviv e Yavorv, num corredor de 60 Km por poucas dezenas de largura. Neste pogrom, mães viram os filhos arrancados do aconchego, pais sentiram-se culpados, idosos olhavam perplexos para um cenário que nunca tinham imaginado, e as crianças, essas, choravam por as terem acordado para aquele pesadelo.

E se … nesse espaço exíguo, onde os poucos ucranianos sobreviventes, os espíritos ainda livres, os que ainda não se tinham vergado às botas e humilhações do ocupante, esses, confinados numa  prisão a céu aberto, num espartilho onde diariamente tinham de procurar entre os escombros o sustento diário por entre a escassez, as dificuldades do apoio internacional, os combates dos resistentes e a determinação russa em acabar com a dignidade ucraniana.

E se … no início o sentimento era de união e partilha, um mundo onde as dificuldades eram assumidas por todos, de acordo com o que cada um podia partilhar. Eram apoio incondicional uns dos outros. Volvidos meses de expropriação, desalojamento forçado, de inferno e massacre constante, de morte e sofrimento, não havia em quem confiar. Não podia dormir sem que dos “farrapos” com quem partilhava o espaço, sem que deles lhe viesse o receio de lhe roubarem a vida e os parcos alimentos que guardava para Oleksandr e Olesia. Ou pior, que lhe roubassem os filhos para o tráfico de crianças, ou de órgãos para de onde quer que a demanda viesse. E guardar com a vida não era uma figura de estilo, uma opção poética. À medida que o tempo passava e as dificuldades se acumulavam, os traços de humanidade iam-se diluindo e os instintos de selvajaria dominavam. Não podia vacilar. Se encurralada ou em perigo tinha de agir. Quem primeiro pestanejasse morria!

E se … a humanidade fosse rara. Os gangues e bandos, inicialmente bolsas de resistência contra o invasor russo, rapidamente se deterioram e desnudaram o que de pior havia no ser humano. A cabeça de porco do “Deus das Moscas” era o ícone inspirador. E ela, Larysa, sabia o que tinha de fazer para proteger a humanidade que ainda via nos olhos embaciados de Olesia. Arranjar comida, não morrer hoje eram a sua prioridade. E para isso faria tudo o que fosse necessário. Larysa era uma lutadora e por Deus, pelos seus filhos, sabia que das profundezas do seu ódio nada a impediria de sobreviver.

E se … o pior ainda estivesse por vir. A central de Zaporizhia tinha explodido há três anos, e as nuvens de morte em assembleia nos céus tinham rumado para Sul e para Este. O “Éolo romano” foi justo e a morte dirigiu-se para o agressor. Milhares morreram no Donbass de Zaporizia, de Donetsk, de Luhansk mas também na Crimeia, Krasnodar e Rostov do Don. Muitos foram desalojados e muitos mais sofreram as consequências da radiação da morte. Para Larysa e para os 44 milhões que tinham desde 2022 sofrido com a invasão, aqueles “filhos-da-p***” mereciam o que lhes tinha acontecido.

Que a explosão da central tinha tido mão “Ucraniana”, na altura, parecia um dado relativamente seguro, ainda que muitos como Larysa tivessem dificuldade em aceitar que alguém tivesse deliberadamente provocado aquela catástrofe. Mas tinha acontecido e por entre o mundo ocidental circulavam informações de que o “acto terrorista” de julho de 2027 tinha sido ou obra dos russos, ou tinha ocorrido com seu conhecimento e anuência. Nos corredores da diplomacia e serviços secretos do mundo ocidental circulava mesmo a ideia que a catástrofe tinha sido planeada nos corredores do FSB ou do Kremlin como forma de eliminar fascistas e terroristas, todos de uma vez, de um só golpe. Só que os tempos são de instabilidade e os ventos do destino, esses, têm vontade própria. E assim, morreram mais “filhos-da-p***” que fascistas ucranianos. De entre os mortos russos, e em consequência indireta das radiações, encontravam-se também os responsáveis pelos serviços russos de previsão meteorológica.

Na Rússia o sentimento de revolta não se fez esperar e Vladimir Putin  aproveitou a catástrofe para reforçar a lei marcial e encerrar os ténues vestígios de democracia e humanidade que ainda subsistiam no seu quinto mandato. Fecham-se portas, abrem-se janelas.

O terror russo não se fez esperar e muitos dos 27 milhões de ucranianos que ainda testemunhavam aqueles tempos negros foram compulsivamente acantonados num minúsculo retângulo murado entre Lviv e Yavorv. Milhões morreram nesse processo violento e agora, sem dados fidedignos, a comunidade internacional estima que dos 44 milhões de ucranianos existentes em 2022 possam em 2030 estar reduzidos a cerca de 13 milhões. Quantos serão? É impossível contá-los. O seu número é como um cronómetro em contagem descendente onde a esperança de vida se reduz a cada minuto. Mortos pela fome, pelos constantes bombardeamentos, pelos russos, pelos gangues, pelos “inúteis” princípios da superioridade moral ocidental. Seja pelo que for a morte é a constante que naquele território todos temem como garantida. Uma constante a que Larysa está determinada a sobreviver. Não lhe vai ser fácil.

E se … Trump vencer as eleições. Se com a sua vitoria a cada vez mais esquálida pressão sobre o invasor russo mudar de sentido e se centrar nos resistentes ucranianos para que “vejam” o inevitável. E se a pressão aumentar que a inevitabilidade seja reconhecida? Muitas vezes Larysa se questionou sobre a “injustiça” das reclamações russas sobre aquele território. Diziam os agressores, que aquele território era seu desde a Rus de Kiev, desde que expulsaram os povos dos Canatos nos séculos XIV e XV, desde que lutaram por ele contra suecos e lituanos, desde que expulsaram o invasor nazi, desde todos aqueles tempos que aquele território era seu geograficamente, mas também por direito divino. Assim o assegurava o Patriarca de Moscu, que via a ocupação como uma cruzada abençoada pelo Deus Ortodoxo contra o herege ocidental. Mas poucos tomavam como relevante que o território antes da invasão era habitado por 44 milhões de ucranianos, ucranianos que ao longo de inúmeras gerações, pela sua cultura, heróis e símbolos tinham ganho o direito de decidir o seu destino.

Com a vitória de Trump nas eleições americanas de 5 Novembro de 2024, o apoio ocidental à Ucrânia deixou de ser uma mão cheia de promessas e procrastinação para, segundo a visão desse “estadista”, e, citando as suas palavras sobre a guerra – “não vai durar mais de 5 minutos. Putin respeita-me, o mesmo não pode dizer o idiota do meu predecessor” –. E não durou mais que cinco minutos entre a eleição de Trump e o avanço das tropas de moscovo que assim ganharam um novo folgo e, imbuídos de aspiração a “terraformadores” eliminaram todos quantos se lhe cruzaram no caminho para Kiev. O objectivo de “desnazificação” e eliminação de “terroristas” ia finalmente ser atingido.

No início do avanço, Larysa e Mykola Melnyk esperaram que o “braço” Europeu da Nato interviesse com botas no terreno ou a entrega das armas que repetidamente anunciavam “loop”. Esperavam um milagre que resultasse num “turning point” do conflito. Mas a esperança em situações de aperto nunca foi boa conselheira e por cada dia de expectativa, em cada dia que esperavam pelo apoio prometido, os russos estavam cada vez mais perto. Kiev estava em perigo e, quando a artilharia se fez residente às portas da cidade a luta devorou tudo quanto resistiu. Combatia-se nos bairros, nas ruas, nas casas e nos escombros. Os russos tinham claramente ordens para não deixarem pedra sobre pedra nem testemunhas como em Bucha e Mariupol. Foi nestes combates em 2025 que Mykola Melnyk morreu. O seu corpo nunca foi resgatado, chorado ou entregue à família. Isso eram luxos de outros tempos.

E se … o absurdo persistir. Larysa sentia um vazio na alma e via toda a mortandade e destruição como um pesadelo de onde ansiava despertar. Procurava por entre as memórias um pouco de lucidez e tentava perceber como toda aquela loucura se tinha iniciado. Percorria tudo quanto sucedera e terminara com o odio a germinar. Onde tinham falhado? Onde se tinha iniciado aquela a insanidade?

Pensou na Praça de Maidan e nos desacatos de 2014. Teria sido aí que a catástrofe se iniciou? Pensou na invasão da Crimeia, na guerra do Donbass, pensou na primavera de 2022 e na forma como os ucranianos pareciam estar a recuperar território. Pensou nas promessas ocidentais e na esperança com que se alimentaram durante meses. Pensou na ajuda que nunca chegou, pensou no desânimo que diariamente se acumulava. Pensou na vitória de Trump, pensou na última fase da invasão russa. Pensou nos desalojados, pensou muito nos desalojados e nos expropriados. Pensou no pogrom à vista de todos. Pensou na batalha de Kiev, pensou na morte de Mykola. Pensou na tentativa de capitulação e na declaração Bruxelas-Kiev que previa uma Ucrânia acantonada a ocidente, murada sem um acesso ao mundo que não fosse controlado pelos russos. Pensou nos países vizinhos. Pensou na Polónia e na Hungria. Pensou nos que muraram as fronteiras e assim impediram que milhões fugissem ao genocídio, emigrassem e fossem tomados como refugiados. Pensou na hipocrisia dos vizinhos que preferiam comer o próprio fígado a sofrer o “abraço russo”. Pensou nos vizinhos mais a norte que esboçaram uma inconsequente tentativa de ajuda. Pensou na derrota rápida destes e no risco que agora corriam de anexação pelo IV império, o império de Putin. Pensou na central de Zaporizhia que em 2027 espalhou morte e devastação. Pensou na reação russa e no extermínio de tudo quanto era ucraniano. Pensou que o estrato geológico destes tempos iria ficar registado com uma discreta linha avermelhada no Holoceno. Pensou nisso tudo e não encontrou respostas.

Pensou que precisava de se manter viva, pensou que precisava de fazer listas, listas de mortos, listas de vivos, listas dos que ainda não tinham morrido, listas de comidas que recordava com saudade, listas de comidas a que pensava ser alérgica, listas de comidas saudáveis, fazia listas, listas infindáveis, listas das coisas que não se não poderiam listar. Fazia listas de sons, de meios sons para que não se assustasse tanto. Pensava em meio estrondo, meia explosão, meio baque, meio barulho, meio estampido, meio trovão, meia detonação, meio rebentamento, meio estouro, meia pancada, meia bordoada, meio rombo, meio desespero. E se …

E se … em desespero, enquanto acariciava o sono dos filhos, segurava a imagem de Mykola e lhe dizia segredos. Coisas que só ela sabia, coisas que só ele pode ouvir … dizia-lhe que o amava, dizia que o amaria para sempre … Odeio esses “filhos-da-p***”, odeio-os, odeio-os, odeio …

E se … esta realidade não for ficção. E se … já estamos confrontados com ela, uma realidade que olhamos e não a vemos. E se …