Não é habitual falar-se acerca de funerais. São momentos particularmente difíceis e intensos, de tristeza e dor em que nos despedimos de alguém que nos é querido logo após a sua morte. Falar deles é evocar as memórias de perdas, mas é acima de tudo o confrontarmo-nos com o nosso incontornável destino e condição de finitude. Não é agradável. Para muitos é, até, assunto impossível tal é a dificuldade em olhar para a vida e para si mesmos com a naturalidade de que tudo o que nasce, morre por que parte da natureza.

Diga-se em abono da verdade, que os Ocidentais em geral lidam muito mal com a ideia da morte. É raro ver-se crianças em funerais, por exemplo, como se impedindo-as (dizem protegendo-as) do contacto com esta realidade evitasse o seu sofrimento… Para que servirá sofrer?! Mas os funerais, por que rituais sociais, são também momento de encontro entre familiares, amigos ou conhecidos que solidários e mais unidos pelos sentimentos de luto e fragilidade partilham, em jeito de actualização, os acontecimentos mais recentes de suas vidas ou vagueiam pela genealogia familiar buscando continuidades e sentidos.

Recentemente, foi num funeral de um familiar de um amigo que fiquei a conhecer a história do seu Tio Zé, já falecido, que viveu mais de cinquenta anos com uma doença crónica. É uma história triste porque a sua vida foi totalmente condicionada pela sua doença e pelo impacto desta nos que o rodeavam. Havia um Zé antes, que desaparece quando a doença o atinge. Os seus sonhos, o seu projecto, o seu quotidiano transformam-se e porque a sua doença não é física, não é visível, não é concreta, não é compreendida, não é aceite, não gera empatia, os seus amigos afastam-se, os seus colegas não mais perguntam por si, a família alargada encerra-o num segredo, o mundo do trabalho deixa de o querer, a sua mãe e o seu pai vivem-no como um fardo, a vizinhança comenta-o com estranheza, a sociedade deixa de o ver e esquece-se…

Adicionalmente a todo o sofrimento que o Tio Zé viveu em consequência da sua doença, a ignorância, o preconceito e o medo em seu redor enterraram-no vivo, dia após dia, sem um mimo, sem uma alegria, sem amor, apenas abandono. Nesse mesmo funeral e porque o velório assim o permitiu, fiquei a par do historial médico daquela família: do avô materno com diabetes, de outros dois tios e prima direita com cancro, do cunhado com problemas cardíacos, da mãe com hipertensão, da tia madrinha com artrite, da sobrinha com asma… Mas só o Tio Zé era apelidado de esquizofrénico. Só ele era todo doente e sem direito a ter uma doença. Constato que os outros elementos da família não eram apelidados de cancerosos ou hipertensos. Eram simplesmente a Ana, o João ou o Carlos… Não lhes eram alteradas as identidades nem reduzidas as existências aos seus problemas de saúde.

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Estima-se que 1 em cada 5 Portugueses tem um problema de saúde psicológica, o que significa que muito provavelmente nós, algum nosso familiar, amigo ou conhecido venha a vivenciar uma doença ou problema deste tipo em algum momento da vida. E não obstante o aumento dos níveis de escolaridade da população e de mais informação disponível, os níveis de literacia em saúde mental persistem embaraçosamente baixos, prolongando-se estereótipos como perigosidade, imprevisibilidade e responsabilidade pela doença das pessoas com estes problemas e consequentes crenças irreais que motivam a discriminação.

O estigma na doença mental é uma das maiores barreiras que as pessoas que a vivem têm de enfrentar, diminuindo as suas possibilidades de fazer amigos, de arranjar emprego, de se inserirem na comunidade, de recuperarem. Haverá coisa pior do que ser-se morto em vida, muito antes de se falecer?

Psicóloga especialista em Psicologia Clínica e da Saúde, Psicologia da Educação, Psicoterapia e Psicologia Vocacional e do Desenvolvimento da Carreira