O modelo social europeu é uma aquisição essencial e um marco cultural e civilizacional das sociedades democráticas europeias. Independentemente da sua racionalização, deve ser encarado como um ativo social de valor inestimável e, como tal, ser posto ao serviço da política de desenvolvimento e emprego da União, como instrumento fundamental dessa política e porta de entrada para a revolução digital e não como variável de ajustamento contingente de medidas nacionais de gestão conjuntural dos mercados de trabalho.

A natureza do problema

O conceito de “modelo social europeu”, com toda a carga histórico-política que representa e encerra, não só sintetiza bem todas as “guerras do quotidiano” já em curso, como será a prova de fogo derradeira da futura democracia europeia no quadro de uma eventual federação de Estados-Nação. Estamos perante um combate aberto entre a velha ordem social, contida nos limites do anterior Estado-Providência, e a nova ordem social, de natureza e âmbito transnacionais, que ainda não foi capaz de cuidar do seu modelo de política social. Por isso, a questão pertinente no quadro de uma federação de Estados-Nação é a seguinte:

Como fazer a transição da velha ordem, baseada na segurança do emprego e do trabalho por conta de outrem, para a nova ordem social, assente na valorização das condições de empregabilidade, numa proteção social ativa orientada para os mercados de trabalho e iniciativa, na inovação social e em novas formas de ação coletiva, bem como no desenvolvimento das capacidades individuais de empreender? Dito de outra forma, estamos a deslocar o essencial da política social para montante do “problema social”, reduzindo o seu custo de oportunidade a jusante em medidas duvidosas de gestão do mercado de trabalho e investindo mais em medidas de estruturação dos mercados, no ecossistema social dos empreendimentos e seus modelos de negócios.

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Dez anos após a grande crise de 2008, perante a desindustrialização, a deslocalização de investimentos e a desestruturação social, a União Europeia está, claramente, necessitada de uma nova doutrina de política social, em sentido amplo, que alargue o leque das escolhas dos percursos pessoais e profissionais, retirando-as dos subsistemas educativos, excessivamente formalistas e redutores, e canalizando-as para intermediários e operadores mais diligentes e diversificados, orientados para os mercados de trabalho e iniciativa ( o seu ecossistema social).

O paradoxo da integração do fator trabalho

Vejamos, mais de perto, alguns planos analíticos com interesse para a questão social europeia:

  • No plano da integração económica, ocorre o que poderíamos designar de “paradoxo da integração do fator trabalho”: quanto mais avança o processo de integração económica maior é a sobrecarga de esforço de ajustamento que recai sobre o fator trabalho e todas as políticas públicas que giram à sua volta; em consequência, a intensidade das políticas de harmonização é muito variável, assim como, a efetividade de uma política de convergência social;
  • No plano do relacionamento entre as ordens jurídicas nacionais e europeia podemos afirmar que há um “paralelismo adequado” entre as competências sociais da União e as competências dos Estados membros, como consequência direta do que dissemos a propósito do esforço de ajustamento feito pelo fator trabalho; isto é, as competências nucleares em matéria de política laboral e social estão sediadas nos Estados membros, cabendo à União regular e regulamentar aqueles aspetos que mais contendem com o funcionamento do mercado único, seja porque impedem uma equivalência de resultados, seja porque permitem a prática de “dumping” social ou prejudicam a melhoria das condições de vida e de trabalho; afinal, a integração jurídica, expressa em noções como aproximação, coordenação, reconhecimento mútuo e harmonização legislativas, reflete, ela própria, em grande medida, a divisão do trabalho e a relação hierárquica existente entre a esfera económica e a esfera social;
  • No plano do espaço de liberdade, segurança e justiça, a questão social corre o risco de ser “contextualizada ou politizada” por via securitária; percebe-se, mais uma vez, como “a conjuntura securitária”, à semelhança da conjuntura económica, na ausência de um direito social consolidado, pode provocar danos gravosos na “questão social”; no preciso momento em que a flexibilidade se instala nas relações de trabalho, parece imprescindível possuir uma visão compreensiva, mas integrada, da política social que faz falta;
  • Finalmente, no plano constituinte de uma nova cidadania europeia, informada não só pelo adquirido do modelo social europeu como, também, por uma nova doutrina dos direitos fundamentais, é imperioso reinventar uma política social pró-ativa que saiba conciliar, em tempo real, flexibilidade, segurança e empregabilidade nos mercados de trabalho.

O paradoxo da integração do fator trabalho anteriormente referido, em pano de fundo neoliberal, ilustra bem a razão pela qual as instituições europeias são, elas próprias, reticentes a uma regulamentação social feita no plano europeu com receio de que este espaço económico seja vítima de “um excesso de espaço social europeu”, isto é, que a diversidade social afunile no espaço social europeu, pondo em causa a competitividade europeia face á concorrência exterior.

Eis, pois, em toda a sua extensão, o paroxismo a funcionar: quanto mais progride a integração económica mais constrangimentos se criam à volta do fator trabalho, quando, justamente, a teoria económica nos tinha, aparentemente, convencido de que a liberdade de circulação do fator trabalho conduziria, a prazo, à igualização da remuneração respetiva. De que nos queixamos, se a teoria não nos disse quando ocorreria tal igualização!!!

Estamos em 2018. As opções europeias de política social são muito sensíveis, já que uma bitola social elevada pode lesar, no curto prazo, as pequenas e médias empresas mais frágeis e uma bitola mínima pode fazer estagnar a própria política social e as discriminações positivas que ela já regista. Não obstante, devido à dívida pública acumulada, é de esperar que o problema social intracomunitário volte à agenda europeia, seja sob a forma de “modernização social”, de “reforma do modelo social” ou de “formação de um espaço social europeu”. A “racionalização do estado social” e o “paradoxo da integração do fator trabalho” revelam bem o “território suspeito” em que se move a política social do nosso próximo futuro. É neste contexto que entra, ainda, a destruição criativa da revolução digital. Assim, por todas estas razões, a futura federação de Estados-Nação deve encarar de frente as seguintes interrogações:

  • Perante o paradoxo da integração do fator trabalho, qual o contributo que a União Europeia deve dar para esclarecer o significado político e social de agendas como “a modernização social”, “a reforma do modelo social europeu” “a formação do espaço social europeu”, a “formação do quarto setor”?
  • Estaremos nós em condições de discutir “modelos sociais”, quando o regime e a regulação neoliberais se apropriam do Estado-providência e zelam pelo seu desmantelamento? Em tempo de flexibilidade e mobilidade crescentes, não será preferível que, cada um, escolha “o seu modelo pessoal” em lugar de essa escolha ser pré-determinada pela “intervenção esclarecida” da administração?
  • Em tempo de destruição criativa, como é que um ser humano consegue escolher o” seu modelo pessoal” e desenvolver uma identidade e história de vida numa sociedade da precariedade, feita de retalhos e fragmentos?
  • Como associar, com proveito, o impacto prescritivo da carta dos direitos fundamentais da União Europeia às expectativas legítimas dos cidadãos europeus e, portanto, a um “modelo normativo do espaço social europeu”?

Evidentemente, o modelo social europeu não se esgota no mercado de trabalho e nas políticas de crescimento da União. Para lá das condições de trabalho há as condições de vida que são, em si mesmas, um fator essencial de produtividade social. A dimensão segurança, em todas as suas valências, é outra componente fundamental do modelo social europeu. Da segurança externa à segurança interna, da segurança societal à segurança pessoal, temos viagem marcada pelo interior do “regime securitário”. Estamos em 2018, dez anos depois da grande crise, mas, ainda, cautelosos e a experimentar combinações de risco, aquelas que misturam regime austeritário com regime securitário. As consequências também já aí estão: desestruturação social e familiar, violência doméstica, crime e insegurança, e, acima de tudo, destruição de capital social precioso como confiança, moderação, prudência, motivação, empenhamento e dedicação. Resultado final, mais populismo e nacionalismo e menos Europa comunitária.

A emergência do 4º setor, o novo espaço público da era digital

É neste contexto, de um modelo social europeu em plena era digital, que emerge o denominado “quarto setor”, uma noção compreensiva para designar o novo espaço público da era e do ecossistema digitais. Com efeito, nos últimos anos, um grande desafio emerge sob a forma de uma nova economia associada ao universo das tecnologias da informação e comunicação, às plataformas digitais e às redes sociais, a chamada “transformação digital”. Esta transformação paradigmática pode ser designada como a mutação dos “Quatro D”: digitalização, desmaterialização, desintermediação, e o seu corolário lógico, o desemprego.

É no interior deste complexo enquadramento global e tecnológico que emergem novas correntes de pensamento e geografias económicas mais inteligentes e imateriais associadas à internet e à tecnologia das redes e plataformas digitais. São movimentos liderados pelas gerações que se movem à vontade no ecossistema tecnológico próprio dos sistemas interativos de comunicação. A culminar esta pluralidade de correntes do pensamento em redor de uma economia das redes e dos recursos imateriais temos a revolução silenciosa da chamada “economia dos bens comuns colaborativos” (Jeremy Rifkin, 2014).

Este universo colaborativo contemplaria uma gama muito variada de bens e serviços comuns e partilhados: os consumos colaborativos de recursos ociosos, a produção social pelos pares, os serviços partilhados pelas comunidades de utilizadores, o financiamento participativo, os espaços comuns de criação criativa, as moedas criativas e complementares, entre muitos outros empreendimentos da chamada economia colaborativa. Bastaria para tal a existência e promoção de infraestruturas de banda larga, uma cultura digital disseminada feita de start-ups e plataformas tecnológicas, redes sociais e sistemas de comunicação interativos, programação e software opensource e modelos de negócio abertos.

Tudo isto, ou seja, uma extensa área da economia de bens comuns partilhados é, por enquanto, uma miragem, pois o capitalismo popular e cognitivo da sociedade do conhecimento está muito longe de ter atingido a sua velocidade de cruzeiro. O que temos neste momento é o gigantismo dos grandes conglomerados tecnológicos e a corrida desenfreada de pequenas empresas start-up que buscam afanosamente chegar o mais rapidamente à condição de unicórnios para serem vendidas e fazerem fortuna. O logro é ainda mais evidente se pensarmos na lógica de funcionamento dos “mercados biface” (uso abusivo dos nossos dados pessoais) protagonizados por aqueles conglomerados e nos condicionamentos que a sociedade algorítmica do Big Data impõe quotidianamente sobre os nossos comportamentos.

Seja como for, é já visível a desestruturação imposta pelo paradigma dos “Quatro D” sobre os mercados de trabalho e emprego tal como os conhecemos ainda hoje. Em particular, a desintermediação comercial e institucional, o setor terciário (o 3º setor) em sentido amplo, passará por um profundo emagrecimento e muitas das suas atividades transitarão diretamente para os clientes/utilizadores através de operações e procedimentos colaborativos e cooperativos de partilha. O mesmo se diga do grande setor da solidariedade social que poderá ser “adjudicado” por ONG com estatutos diversos, do setor do ambiente e da economia circular e, também, o setor da cooperação e desenvolvimento com países terceiros. A estes setores teremos, ainda, de juntar duas grandes áreas com marca cosmopolita muito impressiva, a saber, a educação e investigação científica e tecnológica e todo o setor criativo e cultural, já para não falar do trabalho de voluntariado que geralmente acompanha muitas destas atividades. A este imenso conjunto de setores em trânsito paradigmático damos aqui a designação de “quarto setor”.

De forma caótica ou estruturada, estou convencido de que o quarto setor crescerá imparavelmente. Numa primeira fase em “estado de emergência”, nas margens do sistema instituído, sob a forma mitigada de “responsabilidade social e ambiental”, num segundo momento de forma mais organizada à medida que os nativos digitais e os empreendedores tecnológicos assumirem o controlo da situação nas suas próprias mãos, com muito menos economia de estado e muito mais economia partilhada em inúmeras aplicações. Como todas estas mudanças substanciais estarão sustentadas direta ou indiretamente em sistemas de informação e comunicação, a comunidade nómada dos colaboradores digitais estará sempre presente e será o ator principal desta grande mudança de paradigma.

Entretanto, o Estado Social, por razões de sustentabilidade financeira, reduzirá cada vez mais o emprego público, substituindo funcionários públicos por prestadores de serviços em outsourcing. A economia social e solidária, devido a uma forte contração nos subsídios públicos, reduzirá o emprego social e muitas das suas funções serão externalizadas para as comunidades locais. A economia privada, devido à automatização, reduzirá o emprego convencional e externalizará muitas tarefas que passarão a ser oferecidas pela economia on-demand para onde se transferirão muitos trabalhadores em regime de freelance. Por sua vez, o movimento start-up irá incubar inúmeros projetos empresariais e muitos ficarão em compasso de espera, à espera de uma segunda oportunidade.

A grande inovação no 4º setor é o acréscimo substancial de eficácia e eficiência que é introduzido pelos promotores da transformação digital nas áreas habitualmente institucionalizadas e burocratizadas. Neste contexto, o quarto setor será, numa primeira fase, uma espécie de “estaleiro de cuidados intensivos”, uma enorme placa giratória por onde circularão os “deserdados da sorte”, os aventureiros, os que estão em compasso de espera e, também, uma boa parte deste nomadismo cosmopolita em “experienciação permanente”. Para atender a muitas destas situações novas, circularão, muito provavelmente, para além da moeda oficial, várias moedas locais em comunidades mais ou menos criativas.

Se tudo correr como previsto, a inovação e o empreendedorismo sociais, com uma forte base tecnológica, estarão em condições de se substituir, em muitos casos, às instituições e burocracias do Estado Social com ganhos de eficácia e eficiência muito apreciáveis. Por outro lado, ao passarmos do emprego para a empregabilidade e do trabalho para a prestação de serviços, estamos, verdadeiramente, a revolucionar o mercado do emprego e do trabalho. Estaremos, assim, num futuro não muito longínquo, devido à quebra estrutural do emprego, condenados a uma sociedade de regimes laborais muito diversos, uns em part-time, outros em regime de freelance, outros ainda em regime contributivo e colaborativo, sob muitos formatos, condições e reputações, se quisermos, uma sociedade onde o individuo “se produz a si próprio”.

No final, não surpreenderia que o cidadão pluriactivo acumulasse rendimentos com diversas proveniências, a saber: um emprego em part-time num serviço público e/ou empresa privada, uma prestação de serviço em regime de freelance numa empresa on-demand, algumas horas num banco do tempo local em troca de um voucher e, finalmente, uma “inscrição” numa startup colaborativa de uma parte dos seus recursos ociosos em troca de uma receita eventual.

A inovação tecnológica, social e empresarial no 4º setor permitirá, ainda, que as diferentes comunidades de utilizadores e fornecedores organizem novos formatos de prestação de serviços com suporte em plataformas tecnológicas cujas aplicações informáticas serão instaladas nos telefones móveis dos jovens e menos jovens que desejam entrar no “mercado de trabalho”. Algumas aplicações indicarão, mesmo, “perfis ocupacionais” com passagens por várias atividades e contagens de “tempo de serviço” respetivo. Nesses perfis ocupacionais, o trabalho a tempo parcial estará associado, provavelmente, a uma formação profissional, a um banco do tempo de voluntariado, a uma prestação de serviço em regime freelancer e outras atividades úteis à comunidade como, por exemplo, a agricultura social e comunitária. Quer dizer, o 4º setor é, essencialmente, um “campo de cultura” onde se cultivam perfis profissionais com o objetivo de aumentar a empregabilidade e não deixar ninguém descalço enquanto procura uma ocupação que seja do seu agrado. Obviamente, estes perfis ocupacionais tornarão absolutamente imprescindível a complementaridade de rendimentos, em moeda e em espécie.

Nota Final

No próximo futuro, a União Europeia terá, no mínimo, de conceber e implementar, por via de uma “cooperação reforçada”, um programa de ação em matéria de espaço social europeu, à semelhança do que se fez com o mercado único, a moeda única, o espaço de liberdade e justiça, o espaço Schengen ou o espaço de educação e investigação. Nesse programa de ação, a estruturação do quarto setor ocupará um lugar privilegiado e, num plano mais substantivo, a sociedade europeia do século XXI terá de decidir sobre a dosagem que ambiciona de sociedade e economia colaborativa e partilhada.

Se formos capazes de entender e praticar esta “inovação estrutural” introduzida pelo quarto setor no modelo social europeu, estaremos perante uma verdadeira revolução nos mercados e políticas de emprego e trabalho:

  • Em primeiro lugar, a atual bipolarização do mundo do trabalho poderá ser desbloqueada,
  • Em segundo lugar, os macjobs e o trabalho intermitente serão bem-vindos,
  • Em terceiro lugar, as instituições de ensino profissional, técnico e superior, praticando uma política de portas abertas facilitam o melhor regime de empregabilidade e formação,
  • Em quarto lugar, estes diferentes perfis ocupacionais, uma vez validados pelas autoridades públicas no âmbito de um regime de flexissegurança, garantem um direito fundamental de proteção social para lá da mera condição laboral em cada momento,
  • Em quinto lugar, a revisão do direito fiscal promove e facilita o melhor regime de pluriatividade e plurirrendimento no quadro do trabalho intermitente e do trabalho independente.

Finalmente, a todos estes tópicos, iremos acrescentar, porventura, a discussão pública em redor do conceito de rendimento básico de existência, a reforma do Estado Social e do “modelo silo” de prestação de serviços do Estado-administração e, ainda, uma reflexão apurada sobre a plataformização de uma extensa gama de bens e serviços comuns que podem ser oferecidos pelas comunidades locais e acrescentados pela sociedade colaborativa e cooperativa.

Se não for capaz de dar um contributo decisivo para resolver o paradoxo do fator trabalho no espaço social da União e para introduzir o quarto setor no espaço público da era digital, a futura federação europeia de Estados-nação não terá valido a pena.

Universidade do Algarve