Quando entramos numa luta hercúlea – senão mesmo impossível – de definir sentimentos e sensações, sabemos que só nos resta uma aproximação genérica e abstrata, dado que sempre existirão infinitas definições para os mesmos termos. E, graças a este ponto, a ciência económica tem-me sido útil nesta tentativa de parametrizar inúmeros aspetos da vida e de compreender melhor o mundo, sem censurar os devaneios e as opiniões dos demais.

Da mesma forma que defino “felicidade” como sendo o que resulta da nossa realidade subtraindo a expectativa que havíamos idealizado sobre algo ou alguém, então para caracterizarmos “saúde mental” também teremos de utilizar um pendor que se adapte a todas as realidades. Desta análise prévia, creio que uma possível definição para “saúde mental” seja cada qual deter a capacidade e a liberdade para se poder enquadrar dentro de si próprio.

Mesmo nos dias “avançados” e tecnológicos de hoje – e ironicamente de forma mais marcada nas nações mais desenvolvidas e tecnológicas -, parece que a maioria da sociedade vende à própria sociedade que as pessoas não se podem permitir a estar tristes. Nos últimos tempos, sobretudo à conta da pandemia que atravessamos, já se começa a falar mais acerca de “saúde mental”, mas – salvo honrosas exceções – de um prisma alarmista, como se as pessoas não pudessem ter os sintomas que sentem (enquanto seres emocionais que são) e tivessem de os erradicar por completo e o quanto antes, numa luta feroz contra o tempo.

Ora, se enquanto sociedade nos mantivermos nesta abordagem constante que ilude os cidadãos com uma utopia, que é a luta pela felicidade contínua e a todo o instante, então não estaremos a ser benéficos para nós próprios.

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Temos que ver que um sintoma é verdadeiramente importante, na medida em que é o principal vetor que sinaliza a existência de uma resposta do indivíduo perante um constrangimento percecionado por si. Posto isto, ter “saúde mental” parece-me que tem muito mais que ver com a adaptabilidade ao percurso em que nos movemos do que às utopias de alcançar um determinado estado imutável de “felicidade”. Ora, daqui resulta que, com alguma probabilidade, “saúde mental” não seja sinónimo de “bem-estar”, mas antes possuirmos a capacidade de lutarmos pela nossa definição única de “bem-estar”.

Acredito que a maioria das pessoas se tente dissociar das experiências que se revelam ameaçadoras por causa, entre outros fatores, de uma negação (conveniente e consciente) – como quem dorme “só mais 20 minutos”, mas várias vezes na mesma manhã. Em tempos pandémicos, este comportamento generaliza-se e intensifica-se. Em fases como a que atravessamos atualmente, o caso torna-se severamente mais grave, porque um sem número de pessoas tenta dissociar-se da própria realidade, como se tal fosse possível. Como se fosse possível esconder uma pandemia (e todos os problemas que lhe estão associados) dentro de um armário ou debaixo de um tapete.

Portanto, a adaptabilidade saudável perante a adversidade é, talvez, a tal “saúde mental”, já que a vida tem mais de caminho irregular do que de destino pródigo. Principalmente quando jamais sabemos qual o destino que nos espera, e quando cada destino se transforma automaticamente em novo ponto de partida. Contudo, não podemos esquecer que uma readaptação constante e interminável – por excesso de linguagem, aquilo que apelidaria de “hiperadaptação” – também será tóxica. Deste modo, e se quisermos ser ainda mais precisos na análise, diria que “saúde mental” é, provavelmente, a capacidade de equilíbrio entre a boa e a má adaptabilidade em cada um de nós.

Esta fase pandémica está longe de ser uma crise que se finda nas áreas da saúde, social e económica, mas antes uma crise sistémica, que tem, desde logo, um foco anímico altamente vincado. Lá no fundo, toda a gente o sabe, mas raros são aqueles que destrinçam corretamente o que sentem.

A fase que atravessamos – seja pela visualização constante de filas intermináveis de ambulâncias à porta dos hospitais, seja pela doença (ou risco de doença) de familiares, seja pelo estado de alerta constante por corrermos o risco de sermos infetados por um vírus, etc. – gera um cocktail explosivo que agrega o medo à impotência, ao mesmo tempo que limita a sociabilidade. Como tal, é perfeitamente normal que, por vezes, as pessoas se sintam cansadas, amarguradas e inconformadas.

Ora, se “saúde mental” é o tal equilíbrio entre a boa e a má adaptabilidade de cada um de nós, então é natural que, nesta fase, muito poucos mantenham a sua de forma íntegra. Esta pandemia gera um déficit de “saúde mental” porque nos impõe uma realidade distinta a cada dia, de forma literal e profunda. Por força disso, as pessoas veem-se obrigadas a viver num regime de hiperadaptação interminável, sem nunca atingir o bem-estar tão expectado.

Se algumas pessoas admitem que se encontram menos bem animicamente, a maioria vai referindo apenas que tem dormido mal, dores musculares, dores de cabeça, etc.. Contudo, isto só sucede porque se encontram hipervigilantes. E estes marcadores somáticos revelam muito mais sobre o psicológico (não admitido) do que sobre o não psicológico (admitido).

A realidade de hoje não é a mesma de ontem e não será a mesma de amanhã. Cada pessoa ainda não teve tempo para se adaptar e já se vê imediatamente obrigada a readaptar novamente, não existindo margem para sedimentar a “realidade” que cada qual necessita, oscilando numa tensão contínua e numa desumanização evidente – a ausência da face, do toque e da sociabilidade tem impacto fortíssimo, ainda que tantas vezes isto seja processado pelo cérebro de forma inconsciente.

Em suma, este ensaio não tem como objetivo alarmar ainda mais os leitores, mas, sim, o seu oposto: tentar trazer uma análise mais racional e profunda que faça compreender que todos nós, humanos e em fase de pandemia, não temos de recear – e muito menos julgar anormal – sentirmo-nos cansados, ansiosos ou até mesmo inconformados. Nem tampouco julgar que não deveríamos estar assim. E isto sucede por uma razão muito simples: se não nos conseguimos rever ou encontrar com “o outro”, então dificilmente nos conseguiremos encontrar a nós próprios (por mais redes sociais, reuniões por videoconferência e meios digitais evoluídos que tenhamos à nossa disposição).

Gostaria de lhe garantir uma coisa, em pleno quotidiano de incerteza: todos aqueles que ficarem para relatar esta pandemia terão uma capacidade para apreciar muitíssimo mais alguns momentos e variáveis que, daqui em diante, jamais darão por garantidos.

Finalizo com uma história muito breve. Era miúdo, vinha chateado (já não sei bem com o quê) a sair da escola e, já na rua, deparo-me com um jovem que se encontrava muito debilitado, numa cadeira de rodas, empurrado por uma senhora. Lembro-me de refletir: “Ele seria muito feliz se tivesse a oportunidade de regressar a casa chateado e a pé, como eu.”

No caso relatado, a situação do jovem aparentava ser irreversível. A nossa não. Cabe a nós, no tempo devido, valorizar devidamente o que, um dia, voltarmos a recuperar. Não só pela nossa felicidade, como por respeito (e homenagem) a quem não contar com a mesma sorte.