Foi há já alguns anos que, estando no aeroporto prestes a embarcar, fui levantar um jornal e uma revista, para ler durante a viagem. Para meu espanto, a simpática comissária de bordo que estava de serviço reconheceu-me, porque tinha sido aluna de um colégio de que sou capelão. Ao desculpar-me por a não ter identificado, disse-lhe:

– Se calhar reconhecia-a, se me tivesse dito os seus pecados …

Respondeu-me com uma gargalhada pois, se dissesse as faltas confessadas e por mim logo esquecidas, como sempre faço, decerto também a não identificaria. Na verdade, foi ela que, na minha resposta, reconheceu o estilo a que já a habituara: desde sempre procuro que ninguém deixe o confessionário sem a absolvição, nem um sorriso nos lábios e no coração.

Foi com muita alegria que soube que “o Papa desafia os católicos de todo o mundo a procurar o Sacramento da Reconciliação, neste tempo de preparação para a Páscoa, desejando que encontrem padres com misericórdia e não ‘torturadores’”.  No vídeo da intenção de oração para este mês, Francisco sugere que “Rezemos, para que vivamos o sacramento da Reconciliação com uma profundidade renovada, para saborear o perdão e a infinita misericórdia de Deus. E rezemos para que Deus dê à sua Igreja padres misericordiosos e não torturadores” (Ecclesia, 2-3-2021).

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Eu, confessor, confesso que desconhecia a existência de confessores que sejam torturadores das almas, não só por ser uma aberrante contradição, mas também porque essa não foi nunca a minha experiência como confessor, nem como penitente, que também sou. Se o Papa diz, é porque os há, como as bruxas, mas para mim, como para todas as pessoas que comigo se confessam, a confissão é, sobretudo, o sacramento da alegria.

Não se trata de, como agora também está muito de moda, branquear o mal, ou fingir que o pecado não existe, escamoteando a responsabilidade do pecador. Confessor que, à conta de ser simpático, não reconhece as culpas do penitente, não é instrumento da sua libertação, mas seu cúmplice, porque só a verdade liberta (Jo 8, 32). Como também disse agora o Papa, “quando me vou confessar é para me curar, para curar a minha alma, para sair com mais saúde espiritual. Para passar da miséria à misericórdia”.

O cristão adúltero, ladrão, violador, aldrabão, sacrílego, mentiroso, caluniador, corrupto, etc., não é um coitadinho que vai pedir ao sacerdote que o justifique, como quem vai ao psicanalista encomendar uma fobia que o desculpabilize: G. K. Chesterton dizia que “a psicanálise é confissão sem absolvição”. No sacramento da reconciliação e penitência, o pecador não se desculpa, mas acusa-se do pecado, como o filho pródigo que, podendo ter dito ao pai, eufemisticamente, que tinha tido ‘problemas’, ou que as coisas não tinham corrido bem, não se escondeu cobardemente atrás dessas banalidades, mas confessou corajosamente que, abandonando o pai, pecara contra ele e contra Deus. Por isso, e também porque à sua contrita confissão ia unido o propósito da emenda – confissão sem conversão não é confissão! – o pródigo é perdoado e restituído à sua dignidade filial. Como disse Francisco, passou “da miséria à misericórdia” e, por isso, a festa aconteceu, para escândalo do irmão despeitado, incapaz de compreender, na triste mesquinhez do seu egoísmo, a alegria de se saber amado misericordiosamente por Deus e, mais ainda, a grandeza de um amor que perdoa.

Ser ministro do sacramento da reconciliação e penitência é o mais árduo exercício do ministério pastoral, porque o sacerdote, também ele um pobre pecador, sabe que não perdoa a título pessoal, nem pelo seu saber ou virtudes, se é que as tem: no momento em que absolve, é Cristo, pois só Deus pode perdoar os pecados. Não age em nome próprio, mas é instrumento da graça e da misericórdia divina e, por isso, pode-se dizer com verdade que os penitentes, por intermédio do confessor, se confessam directamente a Deus, como também falamos directamente com alguém quando o fazemos por telefone, ou telemóvel. E, se se me permite a confidência, não foram poucas as vezes que me surpreendi nos comentários que fiz em sede de confissão, precisamente por me aperceber que não eram meus, mas de Deus, que mos inspirou nesse momento.

Nunca senti desprezo, nem indiferença, por nenhum pecador que tenha ouvido em confissão, mas algumas vezes não pude reprimir as lágrimas pelos pecados confessados, os meus também. Doem-me as almas, como as mães sofrem as dores dos filhos, como os apaixonados padecem os sofrimentos dos que amam; sobretudo, dói-me cada ofensa a Deus, a Nosso Senhor Jesus Cristo, a sua Mãe santíssima, à sua Igreja, aos pobres, às crianças, aos doentes, como se fosse um atentado à memória do meu pai, ou um insulto à minha mãe.

Horroriza-me o mal, mas nunca me ocorreu que a fronteira que separa o pecado da virtude é uma linha que separa uns homens dos outros, como se alguns fossem irremediavelmente pecadores e os outros, pelo contrário, impecavelmente puros. Sei que essa divisória passa por todos os corações de todos os homens, porque também nos mais santos há tendência para o mal, como nos mais depravados há uma pálida imagem e semelhança de Deus. Sei que, até ao último instante da vida, um apóstolo pode-se converter num outro Judas Iscariotes; ou um ladrão empedernido se pode tornar, pelo seu arrependimento e confissão, num santo do Céu.

Sei que sou capaz dos maiores erros e horrores e sei também que, todos os que já os praticaram, podem ainda receber todo o amor de Deus, como Maria Madalena, de quem foram expulsos sete demónios; Saulo de Tarso, que foi cúmplice do martírio de Santo Estêvão; e Agostinho de Hipona, que teve um filho de uma amante. Gosto de recorrer à intercessão destes três grandes pecadores, que agora são três grandes santos – os quatro formamos uma bela quadrilha! – porque, embora sem nunca ter faltado gravemente aos compromissos assumidos na minha ordenação sacerdotal, o meu presente é semelhante ao seu passado, na esperança de que o seu bem-aventurado presente seja, pela infinita misericórdia de Deus e a intercessão deles, o meu futuro!

Depois de atender, em confissão, alguém que há muito não se aproximava do sacramento da reconciliação e penitência, tenho por regra abraçar o penitente. Não sei se é muito litúrgico, mas evangélico é, com toda a certeza. Não o faço apenas para o encorajar para a nova vida que, nesse momento, para ele começa, mas também para lhe manifestar a minha amizade e admiração pela nobreza da sua humildade.

Também aprendi do Evangelho a nunca exigir grandes penitências – a que reparação o pai do pródigo obrigou o filho arrependido?! – como aquele bom sacerdote que, na primeira confissão de uma criança, lhe impôs, como insólita penitência, comer algo que era da sua preferência: um ovo estrelado! Aquele padre de província valia uma catedral: com este seu gesto quis ensinar ao seu pequeno penitente que a confissão não é, como o Papa Francisco fez questão de agora recordar, nenhuma tortura, nem nenhum sacrifício penoso, nem nenhuma dolorosa humilhação, mas viver a alegria do perdão, para poder participar no banquete da comunhão, que é a festa do amor de Deus!

O pior tormento dos que estão no inferno é o de se saberem eternamente condenados por um Deus que perdoa: não se perderam porque não se puderam salvar, ou porque Deus os não quis no Céu – Ele “quer que todos os homens se salvem e cheguem ao conhecimento da verdade” (1Tm 2, 4) – mas porque não quiseram ser salvos e o Criador, que nos fez livres, respeita a nossa liberdade. Como ensina São João, “se pretendemos não ter pecado, enganamo-nos e não há verdade em nós. Porém, se confessarmos os nossos pecados, (Deus) é fiel e justo para no-los perdoar e para nos purificar de toda a iniquidade” (1Jo 1, 8-9).

O céu é a festa dos filhos pródigos que, pela confissão dos seus pecados, foram misericordiosamente acolhidos na celestial morada do Pai.