Os convites e desconvites a Marine Le Pen para a próxima Web Summit tem dado aso a muitas tiradas sobre censura e liberdade de expressão. Uma discussão que dias antes já se espalhara pelas redes sociais de todo o mundo com a expulsão de Alex Jones do Facebook, Youtube e outras plataformas. Há por aí muitas almas sensíveis – ou que, para forçar argumentos, não usa e abusa da seriedade intelectual – teimando em confundir as esferas públicas e estatais com as privadas e empresariais. Pelo que decidi, fazendo caridosamente uso da pedagogia que costumo reservar para os meus filhos (que são crianças, mais ainda assim com mais sentido crítico que muitos adultos que cometem opiniões alegadamente informadas), escrever alguns pontos explicativos.

1. Censura existe quando um estado proíbe qualquer manifestação de opinião que esteja dentro do arco ético. (Não é censura um órgão de soberania do estado como um tribunal proibir a exibição de um filme que ofenda direitos de terceiros, por exemplo usando crianças para pornografia.) Um governo proibir um livro de contos eróticos ou um ensaio ideologicamente hostil é censura. Um governo castigar um meio de comunicação social retirando-lhe a publicidade institucional do estado porque é crítico do governo, ou um primeiro ministro a gritar e a ameaçar jornalistas, é censura (pelo menos na forma tentada).

2. Não é censura – repitamos em uníssono: NÃO é censura – um privado não aceitar uma opinião de que não gosta. A liberdade de expressão de uns não retira a outros a liberdade de só ouvir, ler, divulgar e promover as opiniões que considera aceitáveis. A liberdade de uns não pode ser a obrigação de outros ouvirem/lerem tudo o que lhes põem à frente. Nenhum privado tem obrigação de divulgar e dar palco a opiniões que repudie.

3. Uma editora pode perfeitamente recusar editar um livro porque é excessivamente lascivo, ou demasiado conservador e conotado com alguma religião, ou contém ideologia a que o editor/administrador/proprietário torce o nariz. Também pode especializar-se em publicar só livros de escritoras mulheres ou de autores de minorias ou só escritores nacionais ou até só de uma região – discriminando todos os que não cumprem os critérios. Um jornal ou um programa de comentário televisivo não é obrigado (exceto na RTP) a dar voz a todas as correntes ideológicas que pululem por aí. Um blog de amigos, mesmo se profissional, não necessita de ter um representante das FARC. Nada disto é censura.

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4. Donde, o Facebook et al expulsarem Alex Jones não é censura. À parte bitaites sobre os conteúdos produzidos por Alex Jones – destinados a pessoas com QI sub humano ou gosto patológico pela propagação de mentiras, de resto com o mesmo espírito messiânico que os extremistas de esquerda têm com as guerras culturais – estas empresas e plataformas têm todo o direito de suspender contas que vão contra as suas linhas orientadoras. Não gostam? Não usem estas redes sociais. Convençam os estranhíssimos milionários financiadores de Trump, do Breitbart, de Steven Bannon e de Milo Yannoupoulos, Rebekah e Robert Mercer, para financiarem uma nova rede social sem qualquer limite às publicações. Bom, já existe e é um flop, é certo. Vá se lá saber por que razão não é aliciante ir ler exclusivamente haters do mundo ocidental globalizado em versão extremistas de direita. E estas pessoas, também misteriosamente, persistem em tentar conversar com aqueles que garantem ser os fracotes da modernidade.

5. Na mesma linha, a retirada do convite a Marine Le Pen não foi ‘calar’ ou ‘censurar’. Que eu tenha reparado, não existe só liberdade de expressão se se é convidado para a Web Summit. Não obstante, a organização da Web Summit pode perfeitamente convidar Marine Le Pen para uma discussão ou para um debate. Ou o presidente Duterte das Filipinas. Ou um violador em série para dar conta à assistência das motivações para o seu hobby. Ou aqueles académicos que há uns anos se reuniram na universidade de Cambridge para debater quão bom é abusar sexualmente de crianças. Afinal se toda a gente merece ser ouvida, força nisso. Não se acanhem.

6. Outra coisa que não é censura é os potenciais visitantes – ou os contribuintes portugueses que pagam parte da Web Summit – vocalizarem a sua opinião (há liberdade de expressão ou não?) sobre o convite a Le Pen. E, em última análise, não comprarem bilhete. É assim que funciona. Não se gosta, não se compra, não se consome. Considera-se a opinião odienta e hedionda? Tem toda a liberdade para afirmar que a dita opinião é odienta e hedionda.

Em tom de conclusão, deprimente neste ambiente esquizofrénico em que vivemos é perceber como para todos os lados políticos a defesa da liberdade de expressão é instrumental. Houve quem à esquerda, incluindo alguns deputados, propusesse proibir (o método do costume; é compulsivo) o convite a Le Pen. Mas claro que a expulsão de Alex Jones foi justíssima e motivo de aplauso. Ah, e delirariam com convites aos carrascos de Cuba e da Venezuela.

No outro lado, muitos defensores da liberdade de expressão de Alex Jones e Marine Le Pen garantem, em histeria, que proferir críticas a estes ilustres ideólogos é falta de tolerância. Não ouvir calado com sorriso beatífico ideias horripilantes é censurar os autores das ditas ideias. Nada de novo: manifestações pacíficas contra Trump durante a sua visita ao Reino Unido? Horror, onde vamos parar se as pessoas se expressam politicamente em manifestações pacíficas? Toda a gente sabe que o mundo se muda sentado no sofá a beber cerveja ou, nos casos mais eruditos, a ler uma biografia de uma celebridade.

Os tempos estão difíceis para os moderados, os sensatos e os apreciadores das liberdades.