Nestes tempos, muito se tem falado das escolas públicas e privadas e ratings e disciplinas obrigatórias de cidadania. Resolvi por isso mesmo contar a minha história pessoal, aluno de escolas públicas e com um percurso semelhante à grande maioria dos portugueses. Passei a infância e adolescência numa vila piscatória que hoje é uma das maiores metrópoles portuguesas, mas que só passou a cidade quando eu estava na terceira classe. Lembro-me desse dia porque não houve aulas. Estávamos nos anos oitenta, uma época muito diferente de agora e que os jovens de hoje acham que era como o que vêem nos filmes e séries americanas. Mas era completamente diferente. A maior parte das crianças era pobre mas a escola não estava dividida em estratos sociais. Eu vivia numa casa grande e os meus colegas moravam quase todos em pequenas ilhas sem privacidade ou condições, mas isso não nos dividia. Jogavamos futebol na rua, brincavamos na rua, andavamos de bicicleta, viviamos aventuras, até que ao fim do dia as mães começavam a chamar da janela para ir jantar. Stephen King escreveu na sua primeira novela que “nunca mais temos amigos como aqueles que tivemos naquela idade” e ele tem toda a razão.

A disciplina na escola era dura. Levavamos reguadas por tudo e por nada, por isso tinhamos uma técnica especial para não doer tanto: a mão não podia ficar muito aberta nem com os dedos flácidos, o melhor era deixar numa posição reta até aquela dor aguda irromper. Toda a gente na turma estremecia a cada reguada, mais ainda do que aquele que apanhava. No entanto, não eramos coitadinhos, não nos fazíamos de coitadinhos e certamente não nos sentíamos vítimas de coisa alguma, muito menos da sociedade. Ninguém nos tentava meter ideias ou ideologias na cabeça. O dia mais político do ano era o dia da árvore, quando entravamos na sala a cantar a música do Carlos Paião e a professora dizia vezes sem conta que devíamos plantar árvores ao longo da vida. Hoje percebo que devia ser uma metáfora.

O ciclo significava o início de grandes mudanças. Uma escola maior, com vários professores e disciplinas, um período de aulas diárias mais longo. Para mim, num local mais longe e com algumas turmas de alunos mais velhos que não eram nada amigáveis: tinham o dobro da nossa altura e força. Os próprios professores tinham medo deles. Aprendemos que a turma tinha de permanecer unida se eles fossem agressivos com um de nós. A necessidade de sobrevivência ensina lições sobre o trabalho em equipa que nenhum coach de hoje consegue explicar.  Começámos a ter aulas de religião e moral, sendo que o único que não ia era porque os pais eram Testemunhas de Jeová e não deixavam. Mas quando percebemos que podíamos faltar sem que os pais fossem avisados, quase ninguém hesitou em optar por ir jogar à bola ou outra coisa qualquer. Só um par de colegas ia e claro que eram gozados. Não havia palavras como bullying ou assédio, mas tudo era motivo de troça maldosa e exagerada, às vezes violenta: usar óculos, usar aparelho nos dentes, ser gordo, ser magro, ser alto, ser baixo, literalmente tudo.

Com o secundário veio uma época diferente: a adolescência. Estávamos todos a mudar, crescer e prestes a padecer de uma doença incurável e crónica: a idade adulta. Nem toda a gente chegava ao sétimo ano: só aqueles que queriam mesmo estudar. Por isso, o ambiente era mais pacífico. Também o país começava a receber dinheiro da CEE e a cidade a crescer desalmadamente. O sistema escolar começou a ficar mais organizado e a organizar-nos em hierarquias, áreas, ambições, testes psicotécnicos. Estavamos a ficar domesticados e o nosso último grito de revolta foram as manifestações contra a PGA. Mas podia ter sido outra coisa qualquer que servisse de alvo. Não queríamos saber de política, mas a grande maioria de nós sentia que nunca mais ia ser livre e independente. Antes de sermos apenas mais uns resignados, ficamos conhecidos por “geração rasca”. O resto é História.

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