Em Março de 2021, Carlos Moedas, então candidato à Câmara Municipal de Lisboa, deu uma entrevista ao DN e contou como foi o seu primeiro contacto com a cidade que um dia viria a gerir: “Cheguei a Lisboa vindo do Alentejo e nunca esqueci aquele dia em que, depois de uma longa viagem de comboio até ao Barreiro ‘A’, apanhei o barco para Lisboa. Aquela passagem de barco marcou-me para sempre. Aqueles 30 minutos a olhar para uma cidade que não conhecia, mas que transbordava de beleza e de energia. Não tinha dúvidas, aquela seria a minha cidade. Foi, passou a ser e é a minha cidade. Viajei pelo mundo, mas voltei sempre para Lisboa, por que nada, mas nada, se compara com Lisboa.” É uma imagem que faz já parte da iconografia moedista: o jovem rústico, porém brilhante, que vê pela primeira vez a grande urbe que o vai projectar para o mundo.

Eu sei que andar de cacilheiro é uma emoção, mas mesmo a um simplório embasbacado pela monumentalidade da Lisboa, deslumbrado pelo Castelo, pela Sé e pelo Terreiro do Paço, mesmo a um sonhador boquiaberto como Moedas, é impossível ter escapado que, maior que tudo isso, maior do que cidade e arredores, é o Tejo. É difícil não reparar que Lisboa está rodeada de água. Muita água. O cacilheiro navega nela, pá. O rio é omnipresente e, logo ao lado, ainda maior, o mar. Era uma pista, Presidente.

Se, vista do rio, Lisboa parece uma parede branca inclinada, não é só para ficar bonita nos postais. É para ficar o mais parecida possível com o que na realidade é: uma espécie de urinol em ponto grande, onde qualquer líquido que caia escorre lá de cima para o ralo. Portanto, o ar espavorido com que Carlos Moedas tem aparecido nos últimos dias, a falar sobre cheias, não faz sentido. Ele já sabia que, volta e meia, Lisboa fica inundada. Tanto é que, como o próprio admite, a primeira impressão que teve foi que a cidade “transbordava de beleza e de energia”. Pudera! Transbordava porque estava entupida.

No entanto, como esta enxurrada já foi no seu mandato e, apesar de avisado, não quer assumir responsabilidades, o Presidente da Câmara tem insistido que, desta vez, o atolamento geral da cidade se deveu às alterações climáticas. Não é o único, verdade seja dita. A maior parte das pessoas que se pronunciam sobre o tema também o garante. As alterações climáticas causaram estas cheias, diz “a ciência”.

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Ora, sucede que “a ciência” não diz nada disso. Em primeiro lugar, porque não existe isso de “a ciência”, uma doutrina única decretada após concílio de alguns nomeados. Depois, porque mesmo aquilo a que se convencionou chamar “a ciência” na área do clima, que é o IPCC (Intergovernmental Panel on Climate Change), não diz que há cada vez mais cheias, nem que as que há são atribuíveis à emissão de CO2. Pelo menos, a fazer fé no seu último relatório. (Espaço agora à sempre entusiasmante citação de relatórios técnicos, que fazem as delícias de muitos leitores).

No capítulo dedicado a Weather and Climate Extreme Events in a Changing Climate o IPCC é inequívoco: “In summary there is low confidence in the human influence on the changes in high river flows on the global scale. In general, there is low confidence in attributing changes in the probability or magnitude of flood events to human influence because of a limited number of studies, differences in the results of these studies and large modelling uncertainties”. Ou seja, em 2022 “a ciência” afirma que não é possível atribuir a influência humana um aumento de frequência e de intensidade de cheias. Não há dados para isso. Curiosamente, ao contrário do que quem refere “a ciência” cheio de bazófia, “a ciência” tem pouca confiança para se pronunciar com certeza.

“Está bem, Zé Diogo, mas e a chuva? Choveu imenso!”, pergunta o leitor mais céptico. Tem razão, mas “a ciência”, no mesmo relatório, dá-se ao trabalho de explicar: “In summary, there is not always a one-to-one correspondence between an extreme precipitation event and a flood event, or between changes in extreme precipitation and changes in floods, because floods are affected by many factors in addition to heavy precipitation (high confidence)”. E mais: “Attributing changes in heavy precipitation to anthropogenic activities (Section 11.4.4) cannot be readily translated to attributing changes in floods to human activities, because precipitation is only one of the multiple factors, albeit an important one, that affect floods”. Portanto, a chuva não é o factor determinante na existência de cheias, é apenas um entre vários.

Mas o leitor céptico não se contenta com estas explicações e exige mais. “Zé Diogo, isso é tudo muito bonito, mas e o impacto das alterações climáticas em futuras cheias? De certeza que vai haver mais, e piores!” É uma boa questão. Vamos ver o que “a ciência” responde: “Increases in flood frequency or magnitude are identified for south-eastern and northern Asia and India (high agreement across studies), eastern and tropical Africa, and the high latitudes of North America (medium agreement), while decreasing frequency or magnitude is found for central and eastern Europe and the Mediterranean (high confidence), and parts of South America, southern and central North America, and south-west Africa (low confidence)” (destaque meu).

De facto, “a ciência” é um bocado impertinente, tem resposta para tudo. Não há pachorra para esta pespineta. É pouco catastrofista. Não entusiasma tanto lê-la quanto ouvir a interpretação que o António Guterres, a Greta Thunberg ou o Di Caprio fazem dela.

Resumindo: alterações na frequência e intensidade das cheias não são atribuíveis às alterações climáticas, mesmo que aumento da chuva possa ser, pois a chuva é apenas um de múltiplos factores que influenciam as cheias. Além disso, a previsão é que esta zona do planeta vá ter uma diminuição da frequência e da intensidade de cheias. Ou seja, as alterações climáticas até podem servir de desculpa para jovens palermas atirarem comida a quadros e colarem-se a coisas, mas não são explicação plausível para um Presidente de Câmara, ainda por cima engenheiro, justificar porque é que, volta e meia, Lisboa parece o Slide & Splash. No fundo, esta é a maneira educada e erudita que “a ciência” tem de dizer a Carlos Moedas: “Vai mas é trabalhar, pá!”