São dias sombrios, estes. Dias que a América vai vivendo a ferro e fogo, dias em que o mundo ocidental, o mundo das Nações Iluminadas que Pombal mobilizava como referentes indispensáveis do seu progressismo despótico, se lança na vertigem alucinada da violência física e simbólica, da indecência e do anacronismo ignóbil.

Nas últimas semanas, os Estados Unidos, a propósito da morte de Floyd, entraram numa espiral de violência sem limites, traduzida em episódios de destruição de propriedade pública e privada e de ataques injustificados às forças de segurança, assistindo-se (em paralelo com protestos maioritariamente pacíficos, de entre os quais o protagonizado por Mitt Romney, de louvar) à captura de uma causa justa por grupos de activistas radicais que mancham a legítima revolta contra a violência policial.

No nosso jardim à beira-mar plantado, é empunhado um cartaz onde se pode ler que “um polícia bom é um polícia morto”.

Num momento em que seria indispensável um combate feito pelo recurso às armas permitidas do jogo democrático, onde avulta a palavra, opta-se pelo recurso à força, atropelando-se, na aceleração irreflectida do radicalismo exclusivista, direitos e liberdades fundamentais, nomeadamente a propriedade privada, a propriedade dos outros, simples cidadãos particulares a quem são impostas as excrescências de um maquiavelismo revolucionário desnecessário a quem vive numa democracia liberal.

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Já a palavra, mesmo que dela se lance mão, passa a servir de veículo a generalizações absurdas, primitivas e que ostracizam instituições que, agora no caso de Portugal, têm sido um bastião da paz e da democracia, como é o caso das forças de segurança desde os dias 25 de Abril e de Novembro.

A linguagem, a própria língua, são dimensões constitutivas da realidade humana.

O homem é comunicação. O que significa que o homem só o é quando vê, quando vê verdadeiramente, o outro. Só quando o eu se abre ao outro, pela janela da palavra, se pode des-cobrir por inteiro. O homem medeia, portanto, tanto o mundo que habita como o outro, com quem coabita, pela palavra.

Só que, é preciso não esquecer, a palavra, a linguagem, é, só pode ser, também símbolo. Só através do simbólico pode o homem transcender-se, libertar-se do seu tempo. E o homem aspira, sempre, à transcendência. O homem, porque é homem, aspira, sempre, a ser mais do que homem.

O simbólico é esse veículo de libertação da clausura do presente, porque o simbólico é, ou é também, memória, que é a história convertida em sonho lúcido. E só consciente da história, da sua história, pode o homem poupar-se a ser dissolvido pela vertigem do agora.

O homem, quando estilhaça aquela janela, ferindo o outro, fere-se a si próprio, porque fere a ideia mesma de Homem. E, cá está, a ferida, o estilhaçar da janela, é mediado (serve-se de como meio) pela palavra. O simbólico, que ali era abertura e des-coberta do homem, volve-se num punhal cuja lâmina rasga a possibilidade mesma do Homem.

O homem ocidental, que vive do simbólico, do simbólico que é memória e, portanto, história, converteu parte dessa história em instituições destinadas a perdurar no tempo. São parte da tal transcendência do homem. São porções de história que levam como missão a delimitação das possibilidades do presente, que é sempre, mas só aparentemente, espaço de re-invenção ilimitado.

Essas instituições merecem o nosso respeito.

Se assim é, não só é liminarmente condenável a violência, o recurso à força e o discurso de ódio contra as instituições, como é igualmente condenável o revisionismo histórico que pretende erradicar da nossa memória as crónicas e os símbolos de um passado construído sobre valores distintos daqueles que conformam o presente. E isso leva-nos ao próximo ponto.

Nestes dias sombrios, um memorial de Churchill — a voz central do espaço europeu e do mundo ocidental no combate às atrocidades perpetuadas por Hitler –, em Londres, foi vandalizado e ladeado por cartazes que o acusavam de racista, à laia de umas declarações proferidas, num dos casos, há mais de cem anos. Uma estátua do rei belga Leopoldo II (1835-1909!) foi retirada da Antuérpia para restauração, mas, segundo o presidente da câmara, pode não voltar ao seu espaço devido à associação do soberano ao colonialismo em África. Em Bristol, no sudoeste de Inglaterra, centenas de pessoas participaram e rejubilaram com o momento em que uma estátua de Edward Colston, comerciante de escravos do séc. XVII (sim, do século dezassete, essa época dourada da luta antifascista), foi derrubada e lançada ao porto da cidade, mesmo que a sua remoção não tenha sido precedida de uma decisão democrática (ainda que tal não bastasse para assegurar a licitude do acto).  Na outrora sublime Universidade de Oxford, peticiona-se a remoção da estátua de Cecil Rhodes, imperialista vitoriano na África do Sul que financiou, a expensas suas, bolsas de estudo naquela instituição. Em Edimburgo, na Escócia, clama-se pela destruição de uma estátua de Henry Dundas, destacado político do séc. XVIII (idem.), por estar associado à demora da abolição britânica da escravatura.

A ditadura do anacronismo é, no essencial, uma ditadura. Como tal, merece um repúdio assertivo. Como qualquer outra ditadura, alimenta-se da ignorância, da desinformação, de debates à partida inquinados, da ausência de um pluralismo que é essencial a uma sociedade livre. Alimenta-se, também, de uma visão romântica do Homem que o reduz a uma só faceta, descartando a complexidade que lhe é inerente.

Sobre tudo isto, cumpre relembrar as posturas de Burke e de Scruton, em relação à Revolução Francesa e ao Maio de 68, respectivamente. Com eles, é hora de recusar quer a loucura abismal que se precipita na inaceitável violência, quer a intolerável destruição do Belo e da História em nome de um qualquer progresso incauto.