A gestão da pandemia tem-nos revelado um país desorganizado, marcado pela incompetência, em que se contam meias verdades e se cavam ainda mais desigualdades entre o público e privado.
Incompetências. Porque nenhum governante gostaria que uma política, seja ela qual for, corresse mal, aquilo a que temos assistido só pode ter como causa a incompetência que é parente da desorganização.
Comecemos pela pandemia. Quando tudo começou em Março, assistimos a uma hiper-actividade, que merece obviamente ser elogiada, em todas as frentes. Foram erigidos hospitais de campanha, as autarquias concentraram-se no apoio aos seus munícipes que não conseguiam ficar em isolamento nas suas casas e o Governo foi anunciando várias medidas, quer de apoio aos que tiveram de fechar os seus negócios como de prevenção e combate à pandemia, designadamente a contratação de técnicos de saúde. Tudo parecia que ia funcionar bem. Mais tarde anunciaram-se equipas para fazer rastreamento, usando recursos que iam de militares a funcionários públicos, criou-se uma aplicação que gerou uma controvérsia que hoje sabemos ter sido desnecessária.
Os especialistas, e com eles o Governo, sabiam que estávamos perante uma maratona. Mas foi tudo, literalmente, de férias e muitas das medidas adoptadas foram desfeitas – como os hospitais de campanha ou mesmo as iniciativas das câmaras. A segunda onda da pandemia chegou e apanhou-nos desprevenidos, exactamente como agora a terceira vaga.
A aplicação não funciona porque deixaram nas mãos dos médicos o trabalho de gerar e inserir os códigos – como se os médicos tivessem tempo para isso, para dizer o mínimo, já que a isto se chama desperdiçar recursos qualificados. A equipa de rastreadores de contactos nunca foi verdadeiramente constituída, mesmo sabendo o Governo e as autarquias que têm funcionários públicos que, neste momento, não têm nada para fazer. As autarquias nada fazem porque não são capazes e porque ninguém as coordena apesar de o Governo ter anunciado em Abril de 2020 a criação de uma equipa de cinco secretários de Estado para a coordenação regional do combate à pandemia.
Dirão: nada do que se está a passar agora seria diferente se essas medidas tivessem funcionado. Verdadeiramente não sabemos. Nestas segunda e terceira vaga da pandemia, a realidade é que estamos entregues a nós próprios e resta-nos quase e apenas rezar para não precisarmos dos serviços de saúde – aqueles que não têm ADSE ou bons seguros para ir ao privado. Porque até nisso se tardou a fazer o que se devia, contando com todos os recursos da saúde.
Incompetência foi também aquilo a que assistimos na escolha do procurador europeu. O debate sobre se o Governo tinha ou não competência para escolher quem quisesse é ofuscado por toda a falta de profissionalismo. Ausência de definição prévia de critérios no concurso interno, desconsideração do juiz que concorreu, o não cumprimento do prazo estipulado pela ministra para o concurso por parte do Conselho Superior do Ministério Público e, cereja em cima deste lamentável bolo, a displicência com que se fundamenta a escolha do Governo que contraria a decisão do júri europeu – a ministra da Justiça dá-se ao luxo de não ler sequer a carta. Coragem teve o director-geral da Política de Justiça, Miguel Romão, em demitir-se e esclarecer o que se tinha passado, mesmo sabendo que pode pagar um elevado preço pelo que fez.
E pode mesmo pagar, levando em conta as declarações furiosas do primeiro-ministro sobre o tema, na versão actual de “quem se mete com o PS leva”. António Costa acusou Miguel Poiares Maduro e Paulo Rangel de estarem a fazer uma campanha internacional contra Portugal, juntando ainda Ricardo Batista Leite na frente sanitária. Quem ouviu as palavras de António Costa entendeu o tom ameaçador, fazendo o primeiro-ministro questão de sublinhar que dizia os nomes para que se soubesse quem eram. Com que objectivo? Para a turba que anda nas redes sociais os atacar, como frequentemente acontece a quem critica as opções do Governo? Não se sabe.
Mentiras ou meias verdades. Antes de se conhecer o plano de vacinação foi veementemente desmentido, na sequência de uma notícia do Expresso, que não se fosse dar prioridade aos idosos. “Há critérios técnicos que nunca poderão ser aceites pelos responsáveis políticos”, disse o primeiro-ministro. O Presidente da República chamou-lhe uma “ideia tonta”. Mas quando se conhecem os detalhes das prioridades do plano de vacinação acaba por verificar-se que Portugal é dos poucos países que não dá prioridade aos idosos – sim, serão os idosos, mas se viverem em lares ou tiverem outras doenças que ficam na primeira fase. Uma meia verdade, como em geral acontece.
O próprio plano de vacinação é um bom exemplo de um país onde “uns são mais iguais que outros”. Já sabíamos que trabalhando para o sector público temos emprego para a vida – um dos factores da dualidade do nosso mercado de trabalho. Agora ficamos a saber que se trabalharmos no sector público da saúde também temos direito prioritário às vacinas, desprezando-se todos aqueles que estão na mesma situação, mas que trabalham no sector privado.
A repetida mentira, ou meia verdade, do abandono do sector privado da saúde dos doentes Covid é mais um caso. Os únicos hospitais que encerraram foram o do SAMS e da Trofa, todos os outros continuaram a sua actividade Covid e não Covid, alguns deles tendo até uma acordo inicial, posteriormente anulado, com o Estado, como se pode ler neste Fact-Check do Observador. Porque é que alguns políticos, com relevo para o BE, insistem em não respeitar os factos? Não se percebe, especialmente porque o desrespeito pelos factos tem sido uma das ferramentas de fragilização das democracias e de radicalização das sociedades.
A meia verdade da defesa do sector público está ainda patente no facto de ninguém se opor à ADSE, o seguro de saúde dos funcionários públicos que mais alimenta o sector privado.
Populismos. É uma das mais frequentes acusações que hoje se ouve no espaço público, separando o nós, o povo, dos eles, a elite. Mas nos dias que correm é frequente confundir-se populismo com identificação de problemas que preocupam grupos crescentes de eleitores. Um dos segmentos mais esquecido da população portuguesa tem sido a classe média ou média baixa trabalhadora com salários baixos. Vivem nos subúrbios e enfrentam dificuldades no acesso à habitação, nos transportes públicos, na educação pública crescentemente degradada e na saúde. São, em alguns casos, vizinhos de um segmento da população que não trabalha e vive dos apoios do Estado.
Ignorar estas pessoas, que estão zangadas, tem sido e continua a ser um erro e é a explicação para o crescimento do partido Chega. É precisão melhorar a qualidade de vida dessas pessoas, investindo nos serviços públicos que, por muito que o Governo do PS desminta, se degradaram nos últimos anos. E são estas pessoas as que mais sentem essa degradação. Falar para elas das maravilhas dos serviços públicos é insultá-las, já que essas pessoas são as que mais os usam e conhecem como ninguém o estado em que estão.
Até há pouco tempo, viam-se defendidas pelo PCP ou mesmo pelo BE – embora o Bloco corresponda mais um segmento urbano, mas igualmente com salários baixos. Mas como esses partidos se envolveram na governação e deixaram de denunciar a degradação dos serviços públicos no tom que o faziam no passado, é natural que essas pessoas se sintam órfãs de representatividade.
O Serviço Nacional de Saúde não é a melhor coisa do mundo, como bem sabem todos os partidos. Podia ser, mas não é. Claro que uma pandemia só se pode apoiar em serviços públicos, mas estamos a ver bem que, por causa da pandemia, muitas outras doenças estão a ser deixadas para trás.
Se não quisermos ver Portugal caminhar para a radicalização que assistimos nos Estados Unidos, temos de começar a preocupar-nos a sério com os problemas que as classes trabalhadoras de baixos salários enfrentam. Um assalto ao Capitólio, como vimos dia 6 de Janeiro, não acontece de um dia para o outro, é um processo que resulta de se condenar ao esquecimento grupos cada vez mais significativos da população. O livro que está traduzido para português com o título “Era uma vez um sonho” agora também em filme na Netflix “Lamento de uma América em ruínas” mostra bem o que se tem passado nos Estados Unidos. A pergunta que temos de fazer é: porque estão cada vez mais pessoas a simpatizar com o Chega? Como disse o Presidente da República, é pelas ideias, e acrescente-se, por políticas que não votem essas pessoas ao esquecimento, que se combatem as ameaças à democracia.
Uma nota sobre os debates das presidenciais. Marcelo Rebelo de Sousa foi sem dúvida o grande vencedor dos debates, saindo vitorioso mesmo do mais difícil, o que o opôs a André Ventura. A surpresa foi Tiago Mayan Rodrigues que, depois de um debate com Marcelo que lhe correu muito mal, conseguiu explicar-se e impedir que o transformem num anarquista que não quer o Estado. João Ferreira teve o azar de ter sido o primeiro a debater com André Ventura, mas a sua defesa da Constituição e o bom senso que, com o actual Presidente, tem revelado na abordagem a fazer ao Chega é igualmente considerado uma boa surpresa.
Ana Gomes e Marisa Matias acabaram por protagonizar os debates mais fracos, se os olharmos em termos globais. Mas, se considerarmos que escolheram falar para o seu eleitorado, foram eficazes, a crer nomeadamente pela reacção que foram tendo nas redes sociais – o seu eleitorado quer essa agressividade contra o Chega. No debate com André Ventura, Marisa Matias não conseguiu vestir o fato agressivo que quis envergar, talvez por nada ter a ver com as suas características de empatia, uma das suas mais eficazes armas. Ana Gomes, desse ponto de vista desempenhou melhor esse papel. Vitorino Silva ou Tino de Rans acabou por, como se esperava, acrescentar pouco.
Por aquilo a que assistimos, confirma-se que temos pela frente umas eleições presidenciais em que há agendas para além dessa eleição, fazendo com que Marcelo Rebelo de Sousa não tenha quem o desafie, verdadeiramente. Mesmo quando Ana Gomes tocou no tema da sua amizade com Ricardo Salgado e que tanto o irritou. E nos debates, Marcelo, pelo seu bom senso, pelo seu manifesto respeito pela democracia, pode até ter reconquistado alguns votos.