No arrebatador processo da fecundação, em média por cada 100 milhões de espermatozoides há um que consegue chegar ao óvulo e unir-se a essa célula dando origem ao futuro bebé. Para encontrarem o óvulo os espermatozoides têm de viajar da vagina até as trompas de falópio, uma viagem muito dura à qual apenas alguns milhares sobrevivem. Depois, ainda por cima, o óvulo está coberto por uma barreira protetiva espessa e, assim, na maioria dos casos, só um espermatozoide consegue fundir-se com ele. Os especialistas argumentam que tamanha seletividade aumenta as hipóteses do bebé resultante ser mais saudável.

Há aqui paralelos óbvios, mas não arrebatadores nem saudáveis, com o processo aterrador da votação dos emigrantes portugueses nas legislativas de 2022. Isto porque entre 1.521.790 eleitores portugueses residentes no estrangeiro, apenas 260.235 boletins de voto (195.701 vindos da Europa e 64.534 de fora dela) conseguiram chegar às trompas de falópio, perdão às urnas na feira internacional de Lisboa (FIL).

Depois, ainda por cima, na grande feira literal e metafórica que foi essa contagem de votos, encontraram uma barreira antidemocrática espessa, onde a maioria deles, apesar de imaculados, foi anulada por contaminação irresponsável através da sua mistura com uma minoria de votos inválidos (sem a requerida cópia do cartão de cidadão junto ao boletim). Assim, anularam-se 159.112 votos (157.205 na Europa e 1.907 fora) e apenas 101.123 foram contados para eleger deputados (dados europeus e fora da Europa somados usando como fonte o Observador).

Na prática, menos de 7 % dos eleitores emigrados atingiram o destino final de verem o seu voto contar. Aqui, em vez de triagem natural para uma fecundação bem-sucedida estamos perante uma eliminação contranatura da democracia do direito ao voto que poderíamos classificar de infertilidade democrática.

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Aliás, apesar de tentar muito, o autor deste artigo em mais de 20 anos de vida adulta fora de Portugal, em vários países, conseguiu votar menos vezes que os filhos que tem (dois). Não é o único: nestas eleições legislativas não parou de ouvir queixas de muitos outros emigrantes portugueses sobre infertilidade democrática. Este é um problema que afeta todos os estratos etários e sociais dos eleitores fora de Portugal causado pela toxicidade repetitiva da inutilidade da rede de consulados, da ineficiência da comissão de eleições e do governo que os nomeia a todos.

Em Portugal mesmo os jornalistas mais informados julgam que para os emigrantes votar é fácil e só não o fazemos porque não queremos pois agora o registo nos cadernos eleitorais é automático. Acreditam que há poucos problemas a montante no envio dos boletins e o problema de mais de 80% de votos anulados só aconteceu a jusante na contagem. Infelizmente não basta ficar em casa no sofá à espera que chegue o boletim e depois só enviar o voto pelo correio. Muito longe disso.

Nas últimas eleições mais de 300 000 boletins de votos foram devolvidos por não chegarem aos eleitores que os tinham que receber para poderem exercer o seu direito de voto. É plausível que muitas mais centenas de milhares de boletins para além desses, ao chegarem a moradas estrangeiras desatualizadas, parecendo publicidade numa língua estranha, tenham sido deitados para o lixo pelos novos residentes.

Assim, a maioria dos emigrantes eleitores queixa-se de nem sequer recebe o boletim de voto pois são enviados para moradas erradas quase impossíveis de corrigir do estrangeiro a tempo de poder receber o boletim na morada certa. Como já referido ouvi inúmeras queixas semelhantes à minha que passo a descrever como exemplo concreto de um problema geral.

Resido no reino unido. Ligando várias vezes e enviando e-mails para o inútil consulado português em Londres, muitos meses antes de saber sequer que ia haver eleições antecipadas tentei sem sucesso nem nenhuma marcação conseguida, mudar a minha morada na Inglaterra renovando o cartão de cidadão, cuja carta de códigos se perdeu precisamente na mudança para a nova morada. A única solução perante uma rede de consulados que do Reino Unido não serve para nada — só se auto serve –, é vir a Portugal tratar dos assuntos burocráticos. Em 2021 vim duas vezes a Portugal para renovar a carta de condução e o passaporte, mas não consegui vir uma terceira para renovar o cartão de cidadão (necessário manter primeiro para os outros documentos).

A 4 de Novembro de 2021 o Presidente da República anunciou formalmente a dissolução do parlamento, marcando eleições antecipadas para 30 de janeiro de 2022. A lei eleitoral diz que a morada para onde o boletim de voto é enviado tem de estar atualizada até 60 dias antes das eleições ou até data do decreto oficial presidencial que as marca, emitido a 5 de Dezembro de 2021.

Sendo assim, dado que os consulados não funcionam, apesar do ministério dos negócios estrangeiros ainda no final de Novembro insistir que são o sítio adequado para garantir o direito de voto, os emigrantes sem códigos ou bloqueados pelo sistema digital (acontece muitas vezes se mesmo tendo a carta de códigos introduzem um dos muitos que está na carta mas não é exatamente aquele que se pede), tinham apenas um mês para vir a Portugal mudar a morada para onde lhes iriam votar o boletim de voto.

Alternativamente, em teoria, mas não na realidade, nesse mesmo mês poderiam contactar o seu consulado e dizer que queriam votar presencialmente. Eu, como tantos outros, não consegui marcar viagem nem contactar o consulado para pedir votos presencial durante esse curto período. Após telefonemas infrutíferos e horas de espera só para ver a chamada ser desligada, só no início de Janeiro consegui falar ao telefone com um empregado do consulado de Londres. Este disse-me “tenha paciência; já não pode votar e não há nada a fazer.” Isto num caso em que o potencial eleitor se informou devidamente e tentou múltiplas vezes votar, o que fará nos casos dos que queriam votar, mas não tentaram tanto.

A minha esposa parecia que era uma emigrante com mais sorte pois recebeu o boletim e enviou o seu voto juntamente com cópia do cartão de cidadão. Pensávamos, inocentemente, que ao menos 50% dos eleitores na família tinham conseguido votar. Estávamos, muito provavelmente, enganados e o seu voto foi anulado embora não estivesse nulo. Assim 100% dos eleitores não votaram no nosso microcosmos familiar tal como aconteceu no macrocosmo de todos os outros emigrantes.

Especificamente, no círculo da Europa, para as legislativas estavam inscritos quase um milhão de eleitores (mais precisamente 926.312). No entanto, não quiseram ou não conseguiram votar por não receberem o boletim nem o consulado aceitar a sua presença para votar, quase 80% dos inscritos (79.37%). Apenas 195.701 (20.63%) conseguiram que o seu boletim chegasse as urnas para contagem. Ainda por cima, desses mais de 80% (80.23%) ou 157.205 foram anulados (a maioria injustificadamente pois tal como o da minha esposa vinha acompanhados de fotocopia do cartão de cidadão, mas foram indevidamente misturados com os que não a tinham).

No total entre cerca de 1 milhão de eleitores na Europa só 38,496 (outras fontes citam 36.191) tiveram realmente direito a ver o seu voto contado para a eleição dos dois deputados pelo círculo europeu.

Quer seja deliberadamente ou por incúria no governo, em consulados mesas de contagem, ou em acordos entre partidos à revelia da lei, uma democracia que arranja maneira de num primeiro passo 80% dos seus cidadãos residentes na Europa fora de Portugal não votarem e num segundo passo, dos 20% que resistem, mais outros 80% serem impedidos de exercer o seu direito de votar, votando apenas cerca de 4% dos eleitores inscritos está longe de ser uma democracia evoluída.

No círculo fora da Europa estavam inscritos 595.478 eleitores, mas apenas 64.534 eleitores conseguiram fazer chegar o boletim às urnas, sendo que desses 1.907 (2.95%) foram nulos. Neste caso, a maioria dos votos recebidos, 62, 627, não foram anulados por mistura com nulos. Ou seja, as coisas foram um pouco melhor a jusante, mas igualmente horríveis a montante. Sendo que só cerca de 10% dos eleitores realmente exerceram o seu direito de votar.

Nos primórdios da democracia na Atenas clássica, 10 a 20% dos cidadãos adultos tinham direito a votar, uma vez que os escravos e as mulheres não o podiam fazer. Passados 2500 anos em Portugal regredimos democraticamente, só votando entre 4 e 10% dos emigrantes inscritos no estrangeiro. Há insistimos uma decadência e infertilidade democrática óbvia.

Tal infertilidade democrática acontece sistematicamente em todas as eleições portugueses recentes. Já tínhamos aqui relatado também que nas eleições imediatamente antes destas, as presidenciais de 2020, tal como a maioria dos outros emigrantes (95%) não conseguimos votar por motivos diferentes dos de agora, mas com os mesmos resultados antidemocráticos ligados à mesma incompetência consular.

O deputado agora “mais votado” na Europa, Paulo Pisco recebeu apenas 14.345 votos, uma quantidade minúscula e nada representativa dos mais de 900.000 portugueses emigrados que não quiseram ou não puderam votar, onde este autor está incluindo. Se fosse cidadão de um país realmente democrático teria, se me deixassem, votado contra Pisco. Este como se fosse um inocente recém-chegado, tentou agora hipocritamente culpar terceiros por “uma profunda falta de respeito para com as nossas comunidade.” Isto quando o que é realmente desrespeitoso para com todos os emigrantes é Pisco, deputado pelo círculo europeu há já várias legislaturas, saber bem do problema persistente há varias eleições do falhanço da democracia e do estado de direito e nunca nada fazer para o resolver. Por exemplo, implementando o voto eletrônico através do reconhecimento das impressões digitais recolhidas para o passaporte ou cartão de cidadão.

Como conclusão preocupante, os 4 deputados agora eleitos por estes dois círculos, Paulo Pisco (PS), Maria Ester Vargas (PSD), Maló de Abreu (PSD), Santos Silva (PS) não são verdadeiramente filhos do povo nem da democracia. São filhos bastardos de uma democracia ilegítima no que toca ao voto dos emigrantes. Não nos representam verdadeiramente. São produzidos artificialmente por dois partidos que nos governam há quase 50 anos, sendo escolhidos pelos líderes desses partidos e por quase nenhuns emigrantes dentro do 1.5 milhão de nós. Não é uma metáfora descabida, concluirmos que perante a infertilidade democrática, estes partidos usam a inseminação artificial.