Transformou-se num hábito. Na terça-feira passada discutiu-se um voto de saudação ao Dia Internacional contra a Homofobia, Bifobia e Transfobia, levado à Assembleia Municipal de Lisboa pela extrema-esquerda. Um ritual sonolento. A moralidade sobe ao púlpito e verte sobre a assembleia aquela impostura com um arzinho moderno e santarrão. Desta vez, queria alertar para “a violência e discriminação” sofrida por pessoas LGBT, assinalando “retrocessos” preocupantes, já devidamente tornados públicos pela ONU e pela União Europeia (a extrema-esquerda procura sempre, e consegue, o respaldo moral e político da ONU e da UE); queria também marcar a decisão da Organização Mundial de Saúde ao desclassificar a homossexualidade como doença mental, em 1990.

Como pode um cidadão de bem recusar-se a apoiar a condenação da violência e da discriminação? Ou o progresso da medicina? À superfície, tudo isto parece merecer o nosso respeito. Não merece. Sobretudo porque à sombra desta ideia florescem outras ideias e acções que danificam os interesses dos homossexuais, dos transexuais e, portanto, da própria sociedade.

Começa por ser lamentável a persistência da esquerda, a este propósito, numa atitude confrontacional. Nos últimos anos não retrocedemos, como dizia o papel. Pelo contrário, cada vez mais a sociedade aceita estas pessoas e factos com naturalidade. E cada vez mais os activistas fomentam o confronto e a estranheza através do estereótipo. Escolhem a dedo os aspectos mais chocantes e provocam deliberadamente a divisão, em vez de mostrar que entre todos nós é muito mais o que temos em comum do que aquilo que nos separa. Há uma explicação simples para fazerem as coisas assim: essa é a sua razão de ser. Este ambiente justifica a existência deles. No dia em que oficialmente acabar o “preconceito” e a “discriminação”, os activistas tornam-se dispensáveis. Que outro modo de vida vão inventar? Como vão subir na consideração da Pátria e do seu semelhante? Quem reconhecerá o seu estatuto e autoridade?

Entremos na matéria. Ou, melhor, na confusão que é tratar homossexuais e transexuais como se partilhassem um problema comum. Nada mais errado. E entre eles existe uma diferença de fundo que vale a pena descrever. A homossexualidade é uma questão de orientação sexual; homens e mulheres que se sentem atraídos por pessoas do mesmo sexo. Como bem decidiu, há mais de 30 anos, a OMS, nada disto implica qualquer problema médico (de resto, não implica problema nenhum). A transexualidade é uma questão de identificação sexual; homens e mulheres que se sentem nascidos em corpos do sexo oposto. O que implica um problema médico sério.

Para um transexual, a dificuldade não está na maneira como a sociedade reage; está na maneira como o seu corpo reage às transformações médicas profundas, fundamentalmente irreversíveis, cuja eficácia só pode ser garantida através de assistência e medicação permanente. Não se pense que um transexual se submete a um tratamento, mais duas ou três cirurgias, e fica com o problema resolvido. Não fica. É um engano grave levar as pessoas a acreditar que é assim. Um transexual exige da medicina que ela mude o seu corpo a níveis que o próprio corpo vai contrariar até ao fim da vida. À custa de medicamentos com efeitos secundários e com interacção com outros medicamentos; ninguém livra um transexual de uma doença de rins, ou de coração, ou simplesmente de envelhecer. Mais cedo ou mais tarde, será necessário compatibilizar novos medicamentos com aqueles que ele já toma e não pode parar. Isto tem de ser dito e compreendido. Há uma leviandade irresponsável no modo como este assunto tem sido abordado. A melhor medicina não transforma um homem numa mulher, ou uma mulher num homem; quando muito, transforma uma pessoa saudável numa pessoa doente para a vida inteira. Desse ponto em diante, esta é a realidade de um transexual. A tal realidade que a esquerda quer abandonar à decisão de miúdos com 16 anos.

Para rematar com êxito a nobre missão de confundir tudo e semear desconforto entre as pessoas, as associações activistas promovem o estereótipo. Primeiro introduziram-se nas marchas do “orgulho gay”, e esse foi o primeiro de uma série de danos. Estive nessas marchas quando começaram a vir para Lisboa. Adorava. O ponto de encontro era na zona do Príncipe Real. Dali arrancava, com amigos gigantescos, vestidos de sevilhana e do que calhava, tropeçando em tacões altíssimos para noites de alegria e divertimento. Até isso a esquerda nos tirou. Hoje uma marcha do “orgulho gay” é uma afirmação política, condolente e narcisa, meio melindrada e movida a ressentimento, contra o capitalismo e contra a democracia liberal. Ponham-lhe em cima as cores que quiserem. E pior. Agora os activistas apresentam pessoas vestidas na sex-shop, maquilhadas ao ridículo, cobertas de perucas; e vão às escolas mostrá-las às crianças. Dizem-lhes que os homossexuais são aquilo. Desculpem, senhores esquerdistas: não são. Essa é uma maneira de apalhaçar as pessoas cujos direitos e dignidade os senhores dizem defender. Mereciam ser tratadas com outro respeito.

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