Na semana passada, almocei em casa de velhos e muito bons amigos. Em frente a uma bela lampreia, e, depois, na companhia de uma mousse de chocolate como já não comia há séculos, a conversa girou em torno de alguns dos costumeiros delírios da política nacional. João Soares, é claro, e a velha e consistente tradição de violência da linguagem no PS, de que Jorge Coelho (“Quem se mete com o PS, leva!”) e Augusto Santos Silva (“Eu gosto é de malhar na direita!”) são bons exemplos. Embora não se deva confundir tudo: Jorge Coelho e Santos Silva percebiam o que estavam a dizer.

Também houve grande galhofa por causa da proposta do Bloco de Esquerda para que se substitua o “Cartão do Cidadão” pelo “Cartão da Cidadania”. Dantes, havia uma obsessão com o sexo, e consta até que alguns vitorianos, com medo de que as pernas das mesas inspirassem sentimentos impróprios em certos indivíduos, as cobriam com púdicas saias. Os tempos mudaram: foi-se o sexo, chegou a obsessão com o género. O Bloco limita-se, de resto, a adoptar as modas de pronto-a-vestir intelectual que os transvios do génio humano põem à sua disposição. A “cidadania” do Bloco é a saia dos outros.

Ainda mal tinha eu acabado de fazer a digestão da lampreia, quando chegou a votação do impeachment de Dilma em Brasília, e, a seguir, as reacções portugueses à coisa. As reacções, como seria de esperar, foram maioritariamente de condenação e de desprezo: condenação pelo suposto “golpe” que a votação representava e desprezo pelo curioso ritual a que os deputados da Câmara se prestaram com visível gosto.

Por acaso, vi em directo, através de um canal brasileiro, e até às três da manhã, a votação dos deputados dos vinte e cinco partidos em Brasília, de que o Observador, seja dito de passagem, fez uma óptima cobertura. Primeiro, a puxar para o assombrado, e, depois, Deus me perdoe, rindo-me de vez em quando. Praticamente tudo o que me faça esquecer o próximo resgate que António Costa e Mário Centeno nos andam a preparar tem o condão de me pôr de boa disposição.

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Notei o que muita gente notou. O modo como quase todos os deputados que votaram “sim”, nas declarações individuais de voto, agradeciam, sensivelmente por esta ordem, a Deus, aos estados que representam, às cidades de que são originários ou onde se estabeleceram, à bancada partidária, à mulher, aos filhos (quase sempre com nomes – as mulheres não), alguns aos netos. Um até voltou atrás, depois de dois outros falarem, para dizer que se tinha esquecido de falar do filho – e disse o nome. Houve também, pelo menos uma vez, cantoria, com chuva de papelinhos, e votos de feliz aniversário a netas. Não faltaram sequer profecias: “Em nome do Senhor Jesus, profetizo…”. A honra das famílias foi defendida, tal como os princípios ensinados às filhas. Sob o olhar do Grande Arquitecto do Universo, votou-se em nome de mulheres que estavam a morrer e de filhos ou netos que estavam a nascer. O particularmente aplaudido deputado Tiririca, que votou “sim”, foi dos mais sóbrios e comedidos. Mas ninguém se enganou no “sim” ou no “não” – erro: houve um deputado de Minas Gerais que se enganou, parece-me, e corrigiu -, e, talvez mais surpreendentemente, ninguém se esqueceu do nome dos filhos, nem do número exacto de votos que tinha recebido para ser eleito.

O “sim” e o “não” repetiam frases simétricas. Se o “não” falava “em nome dos 54 milhões de votos de Dilma”, o “sim” respondia “em nome dos 10 milhões de desempregados”. Se o “sim” dizia “Deus”, “Família”, “Amor”, o “não” dizia “Golpe”, “A luta continua!”, “Não passarão!”. Lá fora, na rua, o “sim” vestia-se das cores da bandeira, o “não” de vermelho. No meio de tudo isto, Eduardo Cunha, o presidente da Câmara, recebia impávido, com a aparência de um sábio estóico, os insultos (“corrupto”, “gangster”, etc.) que lhe eram directamente dirigidos pelos votantes do “não” e alguns do “sim”. Nem Fernando Correia, na saudosa “Bancada Central” da TSF, confrontado com energúmenos que se insultavam uns aos outros e que às vezes se ameaçavam de valentes murros, conseguia manter uma calma tão soberana, a roçar a pura e simples indiferença. E isso até ao fim, pelo menos até às três da manhã, quando o “sim” ganhou (o voto 342), pondo termo a uma irritação cada vez mais notória da maioria com cada voto “não”, que adiava o prazer da vitória. Um tipo assim quase que tem direito a ser corrupto.

Sou o primeiro a admitir que é fácil encontrar em tudo isto razões para várias surpresas e, para quem estiver virado para aí, um riso mais ou menos nervoso. Convém, no entanto, ver também a coisa por outro lado. Primeiro, no que diz respeito à questão do “golpe”. Por muito pouco recomendáveis que sejam os principais líderes da oposição a Dilma, a questão de se saber se houve ou não “crime de responsabilidade” por parte da Presidente (ainda alguém diz “Presidenta”?) está muito longe de receber maioritariamente a resposta negativa que se subentende nos comentários que por cá se podem ler. Além de que Dilma Rousseff presidiu durante anos a um Governo que manteve, e até aumentou, uma corrupção estratosférica. E para não falar da inacreditável tentativa de levar Lula para o Governo, na intenção de o proteger de condenações judiciais e, quase fatalmente, da prisão. (É ministro ou não é? É ministro io-iô.)

Em segundo lugar, o desprezo pelos particulares rituais dos deputados brasileiros. Sem dúvida que é de ficar agradecido que os nossos deputados não invoquem a mulher, os filhos e o resto quando votam a favor de uma proposta do Governo (têm a “ética republicana” para casos de necessidade extrema). Mas a verdade é que, na sua generalidade, também ninguém os imagina a responsabilizarem-se tão pública e directamente face aos seus eleitores como se viu os deputados brasileiros (tanto os do “sim” como os do “não”) individualmente fazerem. Com doses muito grandes de hipocrisia e facciosismo, admito, mas também com alguma coragem (por razões óbvias, mais visível até no “não” do que no “sim”). De resto, seria bom atenuar em parte a suposição de hipocrisia. Quem quer que tenha passado o tempo suficiente no Brasil, dá-se conta, com surpresa, que certos preconceitos que para lá se levam, como por exemplo o preconceito da superficialidade da simpatia e da afectividade extrovertida dos brasileiros, são exactamente preconceitos errados. A simpatia é mesmo, na esmagadora maioria dos casos, genuína. Nós, na Europa, embora não nos Estados Unidos, é que nos esquecemos da simpatia. Experimentem passar seis meses no Rio, e depois cheguem à Europa e digam-me. Não digo que isto valha sem falhas para justificar o estilo dos deputados brasileiros. Sugiro apenas que pode haver alguma relação.

De qualquer maneira, se quisermos tirar indignações dos bolsos, como uma vez disse Vasco Pulido Valente, ou então rirmo-nos do ridículo alheio, temos por cá muitos e bons assuntos. O arranjinho (legal) de António Costa para ser primeiro-ministro. O desastre de um Governo que finge que governa e se limita, na prática, às célebres “reversões”, conduzindo-nos por muito maus caminhos. O ziguezaguear permanente, ao sabor das pressões das corporações, das decisões do Governo. A nossa corrupção nacional, que também conta, como se sabe, com personagens ilustres. Ou, para voltar ao princípio, o prodigioso “Cartão da Cidadania” de Catarina Martins. Não apenas para rir. Há ridículos que não são só para rir. Contêm ameaças sérias, como aqui, ainda ontem, explicou José Manuel Fernandes.