Marcelo Rebelo de Sousa está na Ucrânia, mas foi ultrapassado no jogo de criação de factos políticos pela queda do avião de Prigozhin. O PCP voltou a manifestar-se contra qualquer gesto de solidariedade com a Ucrânia invadida, em nome do apoio a uma paz a qualquer preço, que só serve os interesses da Rússia. O que podemos concluir daqui?

Putin elimina Prigozhin?

É claramente a hipótese mais provável. Apesar de Putin e o seu círculo de securocratas (siloviki) terem feito o possível para transformar a Rússia no país onde tudo é possível e nunca se sabe o que é verdade. Prigozhin terá pago um preço muito elevado pelo seu sucesso na criação de factos políticos cada vez mais ameaçadores para Putin. Parece confirmar-se o que eu e muitos outros analistas previmos: depois do seu golpe falhado de 23 junho, Prigozhin era um cadáver adiado. Os mesmos que diziam que a Rússia nunca ia invadir a Ucrânia, que a Wagner nunca iria desafiar Putin, agora vêm dizer que não se pode afirmar nada sobre este caso. Eu não preciso de esperar que o Kremlin venha deixar claro qual é a linha de propaganda que vai seguir sobre o caso, prefiro lidar com factos conhecidos.

Temos mais de 10 tentativas bem documentadas de assassinato de russos que desafiaram Putin, por exemplo Sergei Skripal ou Alexei Nalvany, por bem menos do que Prigozhin fez. Portanto, não é uma tese, é um facto que o atual regime russo não hesita em tentar eliminar quem considera serem traidores. Temos a coincidência da data da queda do avião com a do golpe falhado de Prigozhin. E ela ocorre um dia depois da purga formal do general Surovikin, privado do seu comando por ser visto como próximo do grupo Wagner e crítico da incompetente burocracia militar. Temos até a pressa com que, mal o avião caiu, foi logo anunciado pelos media oficiais russos que Prigozhin estava a bordo.

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Tudo isto pode ser uma coincidência? Pode, mas os sobreviventes do grupo Wagner não parecem acreditar em coincidências. E, com base nos dados disponíveis, tudo aponta para o avião ter sido abatido pelo regime de Putin para eliminar um aliado que se tornou perigoso. Até porque as outras alternativas não me parecem muito credíveis. Foi uma avaria? Peritos vieram dizer que o tipo de queda não aponta nesse sentido. Erro humano? Não parece crível que pilotos que aterravam nas piores pistas de África não conseguissem aterrar em segurança no país que melhor conheciam. Foi a Ucrânia? Teria certamente motivo para eliminar um criminoso de guerra, mas não faltam alvos com essas características, e neste momento Prigozhin era um problema sobretudo para Putin. Prigozhin ainda pode estar vivo como em 2019, quando um avião da Wagner caiu numa zona remota do Congo e correram rumores da sua morte? Não vejo que a situação seja comparável e o líder da Wagner não ficou conhecido pelo seu talento para passar despercebido. Em suma, e até ver fontes credíveis que apontem noutro sentido, os dados disponíveis apontam no sentido da decapitação deliberada da Wagner.

Se o regime russo não quer estas suspeitas não devia ter-se dedicado a assassinar dissidentes no passado. E tem fácil remédio: uma investigação internacional independente, desde já, enquanto há provas para examinar. Não creio que o faça. E se não o fizer temos mais uma razão para suspeitar do envolvimento do Estado russo na queda, e nenhuma para acreditar no que venha de um inquérito oficial. Alguém crê que será independente do Kremlin e que poderia concluir oficialmente que Putin mandou matar Prigozhin? Voltando ao mais importante: que podemos concluir daqui e o que importa isto para o objetivo louvável da paz na Ucrânia?

Só uma paz armada é possível

Continua a evolução do regime de Putin, mais ameaçado e enfraquecido, no sentido do reforço da violência autoritária. Veremos nas próximas semanas e meses se com sucesso ou se haverá alguma reação. Fica mais uma vez evidente que o Kremlin só respeita a força. Putin foi forçado a chegar a um compromisso com Prigozhin para evitar o prolongar da crise, não podia correr o risco de testar a eficácia e o empenho dos militares e dos chechenos que supostamente o defenderiam da marcha da Wagner sobre Moscovo, nem arrastar um conflito interno que podia pôr em causa a capacidade russa de resistir à ofensiva ucraniana. Com o grupo Wagner mais desarticulado e desarmado, Putin podia avançar contra Prigozhin. Em suma os compromissos com Putin não valem de nada se não forem garantidos pela força.

É isso que Ucrânia e grande parte dos vizinhos da Rússia já perceberam. É isso que todos nós no resto da Europa devemos perceber se quisermos uma paz durável no continente. Uma paz que não seja uma mera trégua para permitir ao regime de Putin retomar a sua agressão em melhor ocasião. A ideia de que poderá resultar uma paz a qualquer preço com Putin ignora os esforços feitos antes e depois de 2014. Foram múltiplas as tentativas de apaziguar sucessivos senhores do Kremlin desde 1991. Eles incluíram a enorme pressão do Ocidente para a Ucrânia ceder todo o seu arsenal nuclear – o terceiro do Mundo, quando se tornou independente em 1991. Passaram também pelo veto da Alemanha e da França à adesão da Ucrânia à NATO em 2008, que Putin declarou que nunca iria esquecer. Vimos o resultado. Só uma NATO e uma Ucrânia coesas, determinadas, e bem armadas poderão dissuadir futuras agressões da Rússia. É isto que o PCP insiste em não perceber. É isto que a maioria dos líderes políticos e dos portugueses parecem perceber. Foi isso que o Presidente Marcelo deixou claro nas suas declarações exemplares na Ucrânia. O mais difícil vem a seguir.