O anúncio de decisões imprescritíveis – Não é não! – exige o dúplice estipêndio de qualquer negócio arriscado: garantindo no imediato uma imagem de intrepidez, cativa para o futuro o capital da congruência – activo sujeito a juros elevados, cobrados a maturidades especulativas. Mas pode ainda dar-se que tudo aquilo que a coerência de Montenegro não parece garantir no imediato (estabilidade, autoridade) possa, à solicitação de cambistas mais avisados, traduzir-se em soldo seguro.

Pouco depois de chegar à Macedónia, Eurípides morreu; no ano seguinte, em 405 aC, foi encenada a sua última obra, As Bacantes. No clímax dessa peça – que oscila perturbadoramente entre o humor negro e o horror – um homem possuído pela curiosidade sobre o que certas mulheres fazem durante a celebração de um rito exclusivamente feminino, veste-se de mulher para espiá-las. A peça rendeu a Eurípides um primeiro prémio póstumo na competição dramática daquele ano, um prémio que tantas vezes lhe escapara. No espaço de um ano, o seu grande rival, Sófocles, haveria também de morrer, e não muito depois era a própria tragédia que sucumbia.

É eloquente que As Bacantes possam ter tido na origem um certo jogo teatral, pois poucas obras na história dramática, e certamente nenhuma outra dentre o corpus de trinta e três tragédias (todas as que restam das cerca de mil encenadas durante o século V a.C.), estão tão conscientemente preocupadas como esta com o teatro e com os seus mecanismos: ilusão e realidade, crença e descrença, riso e terror.

O enredo de As Bacantes recorda um evento de uma difusa pré-história helénica: a chegada à Grécia do culto asiático a Dioniso. No seu discurso do prólogo, o jovem deus – que, recordemos, preside não apenas ao vinho e ao teatro, mas também à dança extática e à loucura “libertadora” – anuncia que, vindo da distante Ásia, chegou a Tebas, cidade natal da sua mãe, Semele, com o propósito expresso de forçar os gregos a aceitarem o seu culto. Mas os tebanos têm resistido, pelo que a divindade, desejando demonstrar o seu poder e autoridade, acometeu as mulheres com o seu tipo particular de loucura, fazendo-as correr para as colinas fora da cidade onde, para grande consternação dos homens que permaneceram em casa, se transformam em bacantes, adoradoras de Baco – o outro nome de Dioniso – folgando na natureza e desposando animais selvagens.

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Nenhum homem fica mais melindrado com esta fenda no comportamento civilizado do que o jovem rei tebano, Penteu – primo de Dioniso, filho da irmã de Semele, Agave, mais uma das mulheres enlouquecidas. Defendendo ruidosamente o autodomínio, condenando o que ele tem a certeza serem as práticas orgíacas da nova religião, determinado a demonstrar o seu poder e autoridade, este jovem rigidamente hipócrita faz a sua entrada anunciando a intenção de erradicar o culto. Ignorando os experientes conselhos dos mais velhos que sugerem um caminho mais moderado, planeia prender as bacantes e capturar e punir o seu misterioso e estranhamente efeminado líder – o próprio Dioniso, na verdade.

No fim, o rei e o deus acabam por confrontar-se, ambos obstinados, cada um convencido da sua própria justiça: um representando ostensivamente a civilização e as suas preocupações (autoridade, masculinidade, moralidade); o outro, a natureza e as suas inquietações (o corpo, a sexualidade, a feminilidade). A escalada do conflito entre ambos conduz a um terrível fim este mais dramático de todos os dramas gregos.

“Mais dramático”, porque a vingança de Dioniso é uma espécie de peça dentro da peça, uma minitragédia encenada pelo próprio Dioniso de que Penteu se torna o involuntário protagonista: as discussões entre o cada vez mais enfurecido Penteu e o estranhamente indiferente Dioniso deixam clara ao astuto imortal – e ao público – uma verdade psicológica que tomamos hoje como certa: a repugnância do rei tebano pelos novos ritos e por tudo o que representam é, na verdade, alimentada por um reprimido fascínio subconsciente. Durante o diálogo mais brilhante da peça, o deus usa esse conhecimento para seduzir o mortal a tornar-se naquilo que afirmava repulsivo: para espiar as mulheres que praticam os seus ritos secretos, explica-lhe Dioniso, Penteu tem de se vestir como uma mulher – algo que ele faz. A última imagem do outrora arrogante rei, que agora sucumbiu a uma loucura alucinada, é um show grotesco: um homem barbudo a ajeitar as dobras das saias e as madeixas do penteado enquanto sai ao encontro do seu destino.

Ou melhor, entra, pois esta preparação abertamente teatral dos bastidores – adereços, perucas, maquilhagem – precede uma espécie de performance. Quando Penteu chega à montanha, onde a sua mãe e as outras mulheres celebram os ritos báquicos, ele esconde-se e espia-as – apenas para ser descoberto, exposto e atacado pelas bacantes, que, confundindo-o no seu êxtase demoníaco com um leão, dilaceram-no membro por membro. Punição terrivelmente adequada para o rei que insistia tão veementemente na autocontenção, na manutenção, como diríamos hoje, dos “limites”.

O substantivo identidade deriva do advérbio latino identidem, que significa “repetidamente”. O latim tem exatamente o mesmo ritmo que o português – um simples jambo, repetido; e identidem nada mais é do que uma reduplicação da palavra idem, “o mesmo”: idem(et)idem. Mesmo (e) mesmo. O mesmo, repetido. É uma palavra que faz exactamente aquilo que significa.

Parece estranho, à primeira vista, que um substantivo que associamos à distinção e à individualidade, à singularidade irredutível de cada pessoa, derive de um outro que denota nada mais que repetição mecânica. Mas depois de pensar um pouco, a etimologia da identidade faz algum sentido: no fim de contas, uma forma de estabelecer o que algo é, é ver se permanece sempre o mesmo, e nada mais, repetidamente. Presume-se que este seja também o caso de pessoas: alguém é, interminável e repetidamente, alguém, e mais ninguém.

Etimologicamente a identidade soa a algo de tranquilizador. Esperemos que politicamente também – esperemos que Montenegro perceba que há certas colinas que não vale a pena espiar.