“Estamos num Estado de Direito, onde se aplicam as leis”. Esta foi a resposta do ministro das Finanças Mário Centeno a perguntas sobre o fim da isenção fiscal de que beneficiava a Montepio Geral Associação Mutualista e que, por essa via, saiu da situação de falência técnica em que estava.

O Estado Direito português, com especial relevo para a administração fiscal, conclui-se, tem então regras para, magicamente, transformar entidades tecnicamente falidas em financeiramente sólidas. E, dentro desse Estado de Direito, também alguns podem escolher se lhes dá ou não dá jeito a isenção fiscal de que beneficiam, alertando o Estado que, afinal, não cumprem os requisitos para o benefício. Assim sendo é mais um Estado com fato por medida das conveniências de alguns e do Governo.

Indirectamente, a administração fiscal é cúmplice do adiamento de um problema. Não se está a resolver o problema do Grupo Montepio. Está a adiar-se, usando engenharias contabilísticas e contaminando parte do sector social, caso se confirme a entrada da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa e de outras entidades de solidariedade social no capital da Caixa Económica por montantes que valorizam o banco em 2,5 mil milhões de euros.

Por mais lançamentos contabilísticos que se possam fazer, há um momento em que, ou há, ou não há, dinheiro. A nossa história recente, em que tivemos de ser resgatados em cima do precipício pelas instituições europeias, é um bom exemplo disso.

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O caso conta-se em poucas palavras. A Montepio Geral Associação Mutualista pediu à administração fiscal para verificar se respeitava os requisitos que a isentam de IRC. A administração fiscal concluiu que não. E, como consequência do fim da isenção, a Associação pode registar, nas suas contas, créditos fiscais de 809 milhões de euros. Com esses créditos fiscais conseguiu transformar os capitais próprio negativos de 251 milhões de euros em 2016 (contas consolidadas) em capitais próprios positivos de 510 milhões de euros em 2017, apresentando as contas dos dois anos ao mesmo tempo, ou seja, agora.

A primeira interrogação que suscita do que se passou é: mas a administração fiscal não verifica, nem que seja de vez em quando, se as IPSS cumprem os requisitos que lhes permitem estar isentas de IRC?

A segunda perplexidade é ver uma entidade não querer estar isenta de IRC mas rapidamente percebemos a razão: com os créditos fiscais que obtém consegue passar de financeiramente falida para financeiramente sólida.

Finalmente, a última perplexidade, está relacionada com a razão invocada para deixar de estar isenta de imposto: os gestores passaram a receber prémios de desempenho, ou seja, há uma relação de interesse entre a administração e os resultados, não se cumprindo assim um dos requisitos da isenção. A partir de agora, já se sabe como é fácil obter créditos fiscais em actividades isentas de IRC quando se quiser equilibrar financeiramente uma empresa e não houver dinheiro para aumentar o capital: consagra-se a existência de prémios de desempenho. Quando se quiser voltar a ter isenção diz-se ao fisco que os prémios acabaram. Parece fácil de manipular este Estado de Direito, em matéria de isenções fiscais.

Ninguém pode dizer que o caso do grupo Montepio não é um problema, e grave, que exige a intervenção do Estado. Estão em causa a maior associação mutualista portuguesa e um banco, duas entidades que, pela sua natureza, podem criar grande instabilidade social e financeira. Quando está em causa o interesse público é fundamental a intervenção do Estado. Qualquer contribuinte consegue entender que é preferível pagar com os seus impostos a estabilidade a pagar com uma crise, feita de desemprego, a instabilidade.

O que não se pode admitir, num Estado de Direito e numa democracia é que, usando esses mesmos recursos, não se resolva efectivamente o problema. O problema dos bancos em Portugal já está a ser suficientemente ilustrativo do preço elevado que pagamos por ter adiado a resolução, de uma só vez, do problema do crédito malparado.

A solução do crédito fiscal para a Associação Mutualista não resolveu problema absolutamente nenhum, apenas o disfarçou contabilisticamente. O buraco está lá na mesma, à espera que o tempo o tape o que, pelo que aconteceu com o GES e o BES, não é uma boa solução. Ganhar tempo não tem resolvido problema nenhum.

A saída que se está a ensaiar para aliviar ainda mais a Associação Mutualista, dos problemas que enfrenta, com a entrada no capital do seu banco da Santa Casa da Misericórdia é outra via para não resolver problema nenhum e apenas disfarçá-lo.

É preciso ter coragem para enfrentar de facto o que se passa no Grupo Montepio e não vale a pena pensar que se está perante problemas de reputação como parece ser a perspectiva da sua gestão. Há um problema financeiro, com raízes em decisões de gestão erradas – entre elas a compra do Finibanco. Se o Governo quer, de facto, resolver o problema, tem de encontrar dinheiro para colocar na Associação Mutualista, torná-la realmente financeiramente sólida. E só depois, quando a mútua puder valorizar o banco pelo seu valor de mercado, envolver outros accionistas. Vender o banco sobrevalorizado é exportar um problema que está circunscrito ao Grupo Montepio para a Misericórdia.

Além disso, é preciso apurar responsabilidades sobre o que se passou no grupo Montepio. O Estado não pode, nem deve, dispor de dinheiro dos contribuintes sem responsabilizar quem não geriu bem e quem transformou um problema privado num problema de interesse público. É preciso ter coragem política para enfrentar o problema e resolvê-lo de uma só vez – como este mesmo Governo fez com o Banif e com a CGD. O que não merecemos é um Governo que é cúmplice da manipulação da lei fiscal e de engenharias contabilísticas para disfarçar situações financeiras difíceis.  Esse é um Estado de Direito para alguns.