Mais tarde ou mais cedo vai acontecer, mas sempre que antecipamos a possibilidade de haver mortes na estrada provocadas por pessoas que passaram a conduzir veículos sem volante, corremos o risco de sermos considerados profetas da desgraça. Se, pelo contrário, ficarmos calados até os acidentes fazerem vítimas, podemos ser considerados negligentes.

Hoje escrevo sobre uma cena real que se passou ontem de manhã na Rua Castilho, em Lisboa. Tal como um filme que passa numa tela, a cena desenrolou-se a toda a largura do vidro da frente do meu carro, ao longo de toda a subida. Um rapaz novo, de jeans cinzentos e t-shirt verde, porte atlético e cara coberta por um lenço para se proteger da poluição, mas acima de tudo dos escapes diretos, ia montado num skate original que não precisava da sua pedalada para se mover.

Consciente da originalidade do seu veículo, o rapaz parecia feliz por poder chegar aos semáforos quase ao mesmo tempo que os carros que ocupavam a faixa ao seu lado. Leram bem, o rapaz ia numa das faixas de rodagem, como se guiasse um carro. Não guiava carro nenhum e tanto ia em posição vertical, a controlar manualmente o seu brinquedo elétrico, como se agachava no skate e desaparecia da vista dos condutores.

Desaparecia do horizonte visual de quem conduzia, mas mantinha-se ativamente na estrada, a subir à velocidade máxima do seu brinquedo. Ou seja, ora ficava ao nível dos pneus dos carros, ora se elevava na vertical e mostrava que estava presente. Isto sempre sem pedalar e com o comando do skate numa das mãos.

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Todos os lisboetas e conhecedores das ruas de Lisboa sabem que a Rua Castilho tem vários cruzamentos, alguns porventura mais perigosos que outros. Estou a pensar no cruzamento com a Avenida Joaquim António de Aguiar, que desce das Amoreiras para o Marquês de Pombal, mas também no seguinte, entre dois grandes hotéis, quando a rua já sobe paralela ao Parque Eduardo VII.

Nos semáforos, o rapaz endireitava as costas e fazia rotações de ombros, pequenos movimentos circulares para aliviar a tensão muscular em que subiu, com nervo, toda a rua entre carros e autocarros. Mal a luz verde surgia, o rapaz apertava o comando que tinha na mão, o skate arrancava e ganhava rapidamente uma velocidade considerável. Em plena subida e aparentemente indiferente ao facto de ser visto ou não pelos demais condutores, o skater baixava-se para ‘esgalhar’ o seu brinquedo e seguia na sua onda.

Eu tive a sorte de o ver aparecer a meio da rua, mas outros não deram pela sua existência até quase o abalroarem. Agachado e como que inerte, por não ter que se movimentar nem pedalar, o rapaz saía completamente do horizonte e não era possível vê-lo através de espelhos laterais nem retrovisores. Tornava-se simplesmente um não-existente na estrada, ainda que ocupasse uma das faixas de rodagem.

Imediatamente antes do cruzamento entre os dois grandes hotéis surgiu um polícia no passeio oposto, a indicar um pequeno desvio na estrada, para a direita, e todos os carros foram forçados a desviar-se. Um deles travou mesmo em cima do rapaz, que continuou como se nada fosse, tal era a concentração no seu brinquedo.

Por um triz e por perícia do condutor do carro, o rapaz escapou sem se dar conta da travagem brusca que provocou. Por outro triz, os carros que seguiam atrás do que travou, conseguiram travar também. O autocarro que subira a rua lado a lado com o rapaz não viu o polícia a avisar o desvio e, por isso, safou-se providencialmente de todas estas travagens em cadeia, mas foi tudo por um ínfimo triz. Bastava um instante para tudo mudar naquele filme e a cena passar a ser de terror: se o autocarro tivesse desviado para a direita como todos os carros se desviaram, teria esmagado o rapaz. Mesmo tendo escapado a esta fatalidade, bastava o condutor do carro seguinte (que travou!) não ter travado e o rapaz também tinha ficado em muito mau estado.

Equilibrado sobre o seu skate veloz, o jovem chegou ao terceiro semáforo (desde que esteve no meu raio de visão) sem sinais de inquietação, muito pelo contrário, pois todo o seu body language era de conquista e satisfação. Nesse semáforo, mesmo antes de chegar ao último da rua, onde se pode atravessar para o lado da penitenciária de Lisboa, o rapaz decidiu dar tréguas aos condutores e atalhou para o passeio. Pouco depois desapareceu da vista e todos respiramos de alívio.

Digo todos porque este miúdo nos stressou a todos. Uns porque ora o viam ora o deixavam de ver, outros porque o podiam ter abalroado ou passado literalmente a ferro, outros ainda (como eu) porque vivem angustiados com a perspetiva de poderem matar ou morrer por causa destes novos condutores. Se o trânsito, que já era complicado, foi cronicamente agravado pelo excesso de tuk-tuks, trotinetas e bicicletas na estrada, guiadas por gente de todas as idades, algumas delas sem a menor noção das regras de condução e de segurança, agora com estes skates elétricos e as rodas metálicas de dois pedais, em que as pessoas circulam de pé e de mãos nos bolsos, as coisas agravaram-se ainda mais.

Nesta mesma semana, em que a Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária divulgou os números de acidentes e mortos na estrada provocados por condutores que guiavam sob efeito de álcool ou com estupefacientes no sangue, confirmando-se que estes números dispararam nos últimos anos, e neste tempo em que a GNR já está a planear as suas operações estratégicas de segurança nas estradas para o Natal e o Ano Novo, pergunto com que autoridade circulam nas faixas de rodagem brinquedos velozes guiados por figuras mais ou menos atléticas, sem que os condutores sejam parados e controlados?

Não falo apenas de drogas ou de álcool, note-se. Falo de licenças para guiar na estrada e de cartas de condução em dia, com o mesmo registo de pontos a que todos os cidadãos condutores são obrigados. Falo, ainda, de controlar as idades dos condutores e a velocidade a que conduzem e também a quantidade de pessoas que se deslocam no mesmo veículo, pois se qualquer condutor de carros pode apanhar uma multa pesada por transportar uma pessoa a mais no seu automóvel, porque não multar as pessoas que se deslocam aos pares (e em trios, por incrível que pareça!) em cima de trotinetas, sem capacete e sem observar qualquer regra de segurança rodoviária.

Aliás, hoje em dia o controlo de velocidade e de cumprimento de regras de condução e segurança tem que passar a ser feito também nos passeios com corredor verde, pois as pessoas passaram a ser atropeladas no passeio e os mais vulneráveis correm risco de vida por não terem um passo suficientemente rápido para escaparem aos condutores acelerados, por não verem bem ou terem falta de ouvido. Num destes corredores verdes que foram estendidos nos passeios das avenidas novas passou há muito pouco tempo, também quando eu estava a passar, um outro rapaz de mota. Sim, de mota. A abrir, como se fosse a guiar numa estrada sem trânsito.

Pergunto-me todos os dias porque é que estas pessoas não são paradas e multadas, mas agora que o governo nomeou um grupo de trabalho para preparar alterações legislativas para impor valores de drogas no sangue (o código penal só determina valores para o álcool), a partir dos quais haverá contraordenação ou crime, tenho esperança de que o governo se debruce também sobre os novos condutores e os novos veículos para criar novas regras de segurança rodoviária.