Uma família em isolamento, dia 26
Sim, vais mesmo poder usar o computador todos os dias. Sim, as aulas vão mesmo ser dadas dessa forma, tal como as aulas de música que tens tido. Sim, vais poder ver os teus colegas de turma diariamente. Não sei se precisaremos de outro computador. Talvez, porque o pai e a mãe têm de trabalhar. E isto não vai servir para brincar, é para aprenderes – mas também vai ter brincadeira, porque assim também se aprende.
Foram mais ou menos estas, muito resumidamente, as respostas que dei à minha filha de 7 anos sobre os meses que aí vêm, depois de ouvir o Primeiro-Ministro falar acerca do terceiro período do ano letivo. Já se esperava que assim fosse, o anúncio oficial de António Costa só o veio confirmar. Devido à pandemia de coronavírus, não haverá aulas presenciais até ao final do ano. Exceção feita, se houver condições para tal, aos alunos do 11.º e do 12.º ano, e apenas para as disciplinas que impliquem exames nacionais para acesso ao ensino superior.
Fica tudo em casa, portanto. O e-learning vai ser uma realidade a partir de 14 de abril, próxima terça-feira, e os conteúdos televisivos em jeito de telescola, complementares às aulas que chegarão pela internet, arrancam a 20 de abril na RTP Memória. Até junho, pelo menos, será assim. No próximo ano letivo logo se vê. Com estas duas frases lapidares que António Costa proferiu perante os jornalistas e o país, ao lado do ministro da Educação, Tiago Brandão Rodrigues: “Estou em condições de assumir o compromisso de que no início do próximo ano letivo, aconteça o que acontecer, teremos assegurado a universalidade do acesso em plataforma digital, rede e equipamento, para todos os alunos do básico e do secundário”.
O que vamos ter não é ensino à distância. O que vamos ter é uma forma de os professores agarrarem os alunos e não os perderem. O que vamos ter é um plano de contingência, um ensaio antes do regresso ao normal possível.
Dito isto, e perante o que aconteceu nas últimas quatro semanas (desde que as escolas encerraram), esta é a boa notícia: já se estava à espera, muitas famílias e muitos alunos já começaram a familiarizar-se com plataformas digitais de ensino à distância e partilha de imagem e documentos, muitos professores tiveram algum tempo para interiorizar esta realidade, e milhares de docentes e estudantes começaram a mexer em software que desconheciam.
E agora a má notícia (ou a constatação, vá): o que vamos ter não é ensino à distância. O que vamos ter é uma forma de os professores agarrarem os alunos e não os perderem. O que vamos ter é uma passagem de conhecimentos e uma solução para os estudantes poderem esclarecer dúvidas com os professores, para que se garanta uma avaliação. O que vamos ter, fruto de um esforço hercúleo do Ministério da Educação para enfrentar um problema de saúde pública, é um plano de contingência, um ensaio antes do regresso ao normal possível. O que vamos ter é um pretexto para lhes focar novamente a atenção, mesmo que lhes sejam desculpados os momentos em que não estarão em frente ao computador (todas as faltas serão consideradas justificadas). O que vamos ter é uma tentativa para trazer as rotinas que dão segurança. Mas ensino à distância é outra coisa.
Este artigo de opinião de João Marôco dá umas boas luzes sobre o nível de preparação da comunidade educativa, das famílias e do país em si para a implementação do ensino à distância. E fala, naturalmente, de uma questão essencial quando se aborda este tema, que é o facto de nem todos os alunos na escolaridade obrigatória em Portugal terem computador, um local sossegado onde trabalhar com ele ou uma boa ligação à Internet.
Independentemente desse pequeno enorme detalhe que pode fazer toda a diferença, se quisermos verdadeiramente falar sobre o que é o e-learning e o que implica, talvez seja bom conhecermos a realidade da Escola Secundária de Fonseca Benevides, em Lisboa, o centro nacional desta modalidade, a partir do qual 26 turmas do 5.º ao 12.º ano de escolaridade assistem a aulas em direto ministradas por cerca de cinquenta professores.
São pacientes com patologias clínicas raras, doenças crónicas ou perturbações de ansiedade como agorafobia. Ou filhos de diplomatas ou emigrantes que mudaram de país a meio de um ano letivo. Também há filhos de pastores evangélicos, de trabalhadores com profissões itinerantes (feirantes) ou de artistas de circo (e herdeiros dessa tradição). Há atletas de alta competição ou alto rendimento que estão em academias de ténis na Califórnia ou a aperfeiçoar o surf no Havai. E mães adolescentes e reclusos. Ao todo são mais de quatrocentos alunos que, por um motivo ou outro, não podem ter aulas presenciais em contexto de sala e por isso precisam de soluções – providenciadas pelo Estado – que lhes garantam o rendimento escolar à distância.
“Quando se começou a falar de ensino à distância e as pessoas começaram a perceber que talvez não houvesse terceiro período presencial, não imagina a quantidade de colegas que me ligaram a perguntar como é que deviam fazer”, diz Helena Brites, professora da Escola Fonseca Benevides, centro do e-learning em Portugal.
Neste estabelecimento de ensino os professores não recorrem apenas ao Zoom nem começaram há duas semanas a trabalhar com esta ferramenta. Skype empresas, Moodle, E-chooling e Escola Virtual são alguns dos programas dominados com facilidade para garantir que a aprendizagem se processa da melhor forma. Mas por ali – e por todo o mundo onde haja um aluno em contacto com esta escola na freguesia de Alcântara – também se utiliza o One Note, Forms, Prezi, Share Point, Socrative, Kahoot ou Mentimeter – e, claro, o famoso Teams da Microsoft, além de outros recursos didáticos digitais disponibilizados pelas editoras de livros escolares.
“Primeiro os colegas aprendem a trabalhar com estas ferramentas”, disse-me ontem à noite ao telefone António Monteiro, um dos responsáveis pela formação de novos docentes na Fonseca Benevides. “Demora normalmente duas a três semanas, no início do ano lectivo. Começam a dar aulas quando se sentem preparados.” Independentemente disso, ressalva o professor de filosofia, há uma grande interajuda entre os docentes. Uns sabem mais, outros não sabem ainda tanto, esclarecem dúvidas entre si para poderem ajudar melhor os alunos. E só começam a interagir digitalmente com os alunos quando estão preparados.
Na retaguarda de toda esta estrutura há ainda uma equipa de técnicos informáticos que garante o esclarecimento de dúvidas e resolve problemas não pedagógicos sempre que for necessário. Aquelas questões sobre a velocidade e capacidade do acesso à internet, os vírus, os sistemas operativos, etc. A mesma equipa que, no início de cada ano letivo, ajuda os alunos que depois estarão longe a instalar software e garantir que os equipamentos que têm são compatíveis com as necessidades das disciplinas que vão frequentar e dos programas que vão utilizar.
“Há umas semanas, quando se começou a falar de ensino à distância e as pessoas começaram a perceber que talvez não houvesse terceiro período presencial, não imagina a quantidade de colegas que me ligaram a perguntar como é que deviam fazer”, diz Helena Brites, professora de História e adjunta da direção da Escola Fonseca Benevides. “De repente, as pessoas perceberam que não tinham condições para isto e que não sabiam.”
Os professores não estão preparados. E os alunos também não. Nem sequer deverá haver tempo para ensinar noções de comportamento social online – a chamada “netiqueta”. Regras como manter a câmara sempre ligada, cumprimentar o professor e os colegas por chat, cortar o microfone e só o abrir se queremos falar e, no final, despedir-se do professor e dos colegas.
De facto, a maior parte dos professores não sabe como se faz. Por uma razão simples: nunca precisaram. Mas agora precisam e estão assustados. Por um lado, tiveram pouco tempo para o domínio tecnológico das ferramentas e para se familiarizarem com a gestão das plataformas: uma coisa é passar duas ou três semanas em dedicação exclusiva e horário laboral a mexer em recursos novos (como se passa no início de cada ano na Fonseca Benevides), outra é tentar aprender coisas completamente diferentes no meio de uma pandemia, sem ajuda técnica e em teletrabalho (alguns estarão a fazê-lo ainda durante este fim-de-semana). E isto deverá preocupar sobretudo os docentes mais velhos e com menos competências digitais.
Além disso, a própria metodologia do e-learning tem algumas diferenças em relação ao ensino em sala. “É muito mais trabalhoso”, diz Helena Brites. “No ensino presencial toca para a saída e vamos embora. Aqui temos de fazer uma descrição muito detalhada da aula, para que o aluno que não assistiu possa depois recuperar a matéria e saber o que foi dado.” Carlos Banha, diretor da Escola Secundária de Fonseca Benevides, concorda. “Os nossos professores não têm margem para o improviso e as aulas que dão têm de ser muito bem preparadas”, dizia ontem num contacto vídeo por WhatsApp comigo e com a colega. “E é muito frequente trabalharmos com fusos horários diferentes dos nossos”, acrescenta o responsável. “Se tivermos um aluno do outro lado do mundo e ele tiver dúvidas ou estiver a preparar-se para um exame, não podemos trabalhar apenas durante aquelas horas específicas. Temos de estar disponíveis para ele.”
Recorde-se que os estudantes desta modalidade têm vidas diferentes e o horário de um treino que foi alterado, a montagem de uma banca de roupa numa feira, um ensaio para um número de circo ou mesmo uma viagem não programada podem, muitas vezes, inviabilizar a “presença” numa aula à distância. E os professores têm de conseguir adaptar-se a isso também. Com sacrifício da própria vida pessoal, claro.
E do lado dos alunos que nunca tiveram contacto com esta realidade, que dificuldades são expectáveis? Quais os principais obstáculos com que se irão deparar? “Acho que não vão ter tempo para aprender a gostar”, responde Isabel Pires, professora de História e Geografia em ensino à distância na mesma escola. “Devemos contar sempre com um mês de adaptação. E aí a curiosidade ajuda. Mas depois só há mais um mês para implementar o que aprenderam. É pouco.”
Além disso, diz a docente do 5.º ano, habituada a lidar com alunos muito jovens, “quanto mais pequenos forem, mais difícil é captar-lhes a atenção e mantê-los focados”. “Querem todos falar ao mesmo tempo, temos de ir estimulando os mais calados para que não se apaguem. E se estiverem em sítios onde a internet caia com facilidade, temos de repetir a mesma coisa várias vezes. E isso causa distração nos outros.”
Não é por acaso que o ensino à distância não se aplica habitualmente ao primeiro ciclo, mas estes são tempos de exceção e é pedido um esforço a todos para tentarmos adaptar-nos. Por isso, nos próximos meses, paciência, tolerância, empatia e tempo, muito tempo, são ingredientes que serão exigidos em maior quantidade aos professores portugueses. E às famílias. Mesmo que seja à distância. Ou por causa dela.
Curiosamente, diz Isabel Pires, empatia é coisa que se serve abundantemente na mesa do e-learning, ao contrário do que se possa pensar. “Claro que falta o toque e a proximidade, os olhos nos olhos, mas o facto de estarmos nestas condições torna-nos ainda mais atentos às fragilidades de cada aluno. Para muitos deles, que têm contextos bastante diferentes, temos de concretizar as aprendizagens para que eles percebam para que serve, ao certo, o que lhes estamos a ensinar.” De facto, nem sempre será fácil explicar por que razão precisam de saber que D. Dinis sucedeu a D. Afonso III e quais os restantes reis da primeira dinastia. E isso eleva ainda mais a fasquia. “Às vezes, no intervalo de um treino de malabares deles, temos de ser nós próprios malabaristas na transmissão de conhecimentos.”
Se não falássemos apenas do terceiro período, que ainda por cima é habitualmente o mais curto, e se não estivéssemos nas condições em que estamos por questões sanitárias, talvez pudéssemos ser mais exigentes e os 1,2 milhões de alunos que terão aulas em ensino a distância a partir de terça-feira tivessem tempo para aprender noções básicas de comportamento social online – a chamada “netiqueta”. Regras como manter a câmara sempre ligada, cumprimentar o professor e os colegas por chat e usar essa funcionalidade para identificar a vontade de intervir, cortar o áudio e só o abrir se queremos falar e, no final, despedir-se do professor e dos colegas antes de fazer log off.
Se houvesse mais tempo, talvez muitos professores não recorressem tantas vezes à comunicação assíncrona (enviar fichas e trabalhos e esperar que os alunos os façam e devolvam) e optassem mais vezes pela comunicação síncrona (em tempo real).
Na verdade, se houvesse mais tempo, talvez no final destes meses de ensino à distância os professores e os alunos estivessem finalmente preparados para o verdadeiro ensino à distância. E só o tempo dirá se estes dois meses serão um ensaio para o futuro ou uma recordação de uma ferramenta que um dia deu muito jeito.
Veja também (Diário de Uma Família em Isolamento):
Dia 1. Sabe o nome do seu vizinho?
Dia 2. Teletrabalho? Vocês não têm filhos pequenos, pois não?
Dia 3. Vai para dentro, olha que te constipas, pai
Dia 4. Jantar de grupo, hoje. Por vídeo? Cada um na sua casa.
Dia 5. #vaificartudobem, mas antes disso estamos a ficar mal
Dia 6. Domingos que parecem outro dia qualquer, sempre iguais
Dia 7. Uma quarentena para ler as mensagens todas no WhatsApp
Dia 8. “Quando é que isto acaba?” Não sei, filha
Dia 9. E os professores dos nossos filhos, como estão a lidar com isto?
Dia 10. Já chegou. Um dos nossos está infetado
Dia 11. Rotinas 0 – 1 Sanidade mental. Que se lixem as rotinas
Dia 12. Agenda: às nove no Instagram ou às dez no Skype?
Dia 13. Como explicar o que aconteceu na Ponte 25 de Abril?
Dia 14. Os vossos pais também não param em casa?
Dia 17. “Sim, vai mesmo ter que ir às urgências”
Dia 18. Pão, vinho e Bruno Nogueira. O que mudou em três semanas
Dia 19. O medo lá fora – a minha filha não quer sair de casa
Dia 21. “E então, o que vamos fazer hoje?” Fartos de pensar nisto todos os dias?
Dia 22. “E se te vestisses de professora?”
Dia 23. Não vamos à terra na Páscoa e a minha mãe está triste
Dia 24. “E se eu infetar o meu filho?” Médicos e enfermeiros em isolamento