Na Idade Média por toda a Europa existiam os servos da gleba, camponeses comprados e vendidos como parte duma propriedade que não podiam abandonar e onde tinham obrigação de trabalhar. Hoje, por cá, parece que estamos todos destinados a ser servos das grandes empresas de telecomunicações, em vez de sermos bem servidos por elas. Na Rússia, a servidão continuou a existir até 1861, o que talvez explique alguma coisa do presente. Em Portugal, no entanto, ela foi relativamente rara. A maioria dos reis portugueses via num povo relativamente livre uma forma de contrabalançar o peso da nobreza, e de reforçar o poder da coroa. Paradoxalmente, o nosso parlamento democrático parece menos preocupado com esta nova servidão das telecomunicações.

Uma história de servidão das telecomunicações

O que quero eu dizer com isto? Não será uma metáfora exagerada? Vou dar um exemplo concreto, e depois digam. Um casal próximo decidiu juntar os trapinhos e comprar casa. Chegou a altura de mudarem os contratos de telecomunicações. Cada um tinha, claro, um contrato diferente, com uma empresa diferente, numa morada diferente, com a fidelização de 24 meses da praxe. Acham que os deixaram terminar os contratos e escolher livremente entre quem prestava o melhor serviço? Ambas as empresas, a quem foi explicada a situação, exigiram a manutenção do serviço (em duplicado, imagino). Ou então o pagamento de centenas de euros de indemnização caso estes servos das telecomunicações decidissem abandonar os seus senhores. Havia alguma outra alternativa? Havia. Arranjarem um outro servo para os substituir! Pensavam mesmo que arranjar novos “clientes” competia à excelência dos preços e serviços destas magníficas empresas de telecomunicações?

Mais, uma das empresas não tinha sequer a possibilidade de manter o mesmo serviço. Não tinha rede por cabo na nova residência. Pode acontecer? Pode, claro. Embora seja de notar que a nova morada ficava a poucas centenas de metros da anterior, ambas em pleno centro de Lisboa. Evidentemente a dita empresa não pôs a possibilidade de fazer esse pesado investimento, um dos tais que supostamente justificam a fidelização. Final da história? Não! A empresa continuou a exigir o pagamento de centenas de euros de indemnização! Só o facto de um dos envolvidos ser jurista e ter podido replicar em juridiquês, de se ter ainda envolvido a DECO, acabou por levar a empresa, depois de vários telefonemas e trocas de correspondência a desistir do seu intento.

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Quantas histórias destas haverá, e com que desfecho? É este o “mercado” das telecomunicações que temos, em que as empresas se comportam como se fossem donas dos clientes. Em que não há nenhuma verdadeira alternativa a preços razoáveis a períodos de fidelização manifestamente abusivos. O resultado é um serviço caro, que oscila muitas vezes entre o sofrível e o péssimo, e que não se vê que esteja a melhorar. Onde está o Estado em tudo isto?

Questões legítimas, a exigir resposta urgente

Não sou só eu a ter algumas dúvidas a este respeito. Recentemente, o presidente da ANACOM – a entidade reguladora das telecomunicações – veio insistir precisamente na necessidade de reduzir o período máximo de fidelização de 24 meses, para uns mais razoáveis seis meses. O objetivo era aumentar a concorrência face a um aumento significativo dos preços das telecomunicações, quando a tendência no resto da Europa será, pelo contrário, para a descida dos mesmos.

Estranhamente, os principais partidos terão recusado mexer na lei relevante, a pretexto de ter sido alterada recentemente, mostrando preferir um compromisso voluntário das ditas empresas. O argumento não convence. Não faltam exemplos de mudanças legislativas com intervalos curtos, e legislar nem sequer é a única opção. Se o parlamento quer legislar bem, porque é que, sendo tão afoito em criar comissões de inquérito para lidar com “escândalos”, não organiza uma para perceber o que realmente se passa neste setor cada vez mais importante?

Posso até facilitar o trabalho parlamentar, sugerindo já umas quantas perguntas. Quais são os grandes investimentos que justificam um tão grande período de fidelização? Quanto custa realmente às empresas o equipamento que nos colocam em casa? Há realmente uma grande diferença na evolução dos preços entre Portugal e o resto da Europa? E, se sim – na ausência de um cartel, que seria ilegal – quais são os custos específicos por cá, e não por lá, que justificam a diferença, e como se pode fazer para alterar isso?

Não me parece aceitável deixar cair este assunto, ele é demasiado importante. Nas nossas sociedades e economias, cada vez mais informatizadas, os serviços de telecomunicações são cada vez mais indispensáveis para todo o tipo de tarefas, desde o trabalho até às interações entre os cidadãos e o Estado. Se quisermos um país mais dinâmico é evidente que é preciso ter tolerância zero para com práticas de imobilismo preguiçoso e rentista. Como diz o presidente da ANACOM, é urgente mudar este estado de coisas. Infelizmente, o Estado parece estar sobretudo interessado em leiloar, ocasionalmente, fatias destas servidões das telecomunicações. Será que é esse o verdadeiro segredo da aparente apatia dos principais partidos face a uma situação que própria entidade pública nomeada para regular o setor diz distorcer o seu funcionamento? Será que, afinal, o Estado não está a leiloar telecomunicações, mas sim a liberdade de explorar os portugueses sem interferências? Tendo em conta o desfecho do caso, até ver, inclino-me para a segunda hipótese.