A opinião pública portuguesa está inquieta. Há uma questão que a divide. Tem a ver com o aeroporto do Montijo. Ninguém sabe ainda bem o que pensar. O Governo apoiado pelos que lhe devem favores e expectativas diz que o aeroporto do Montijo é essencial para a economia, para a criação de emprego, para as alterações climáticas, para a escola e saúde públicas, para o desenvolvimento da inteligência da passarada local e que a oposição não tem legitimidade e que, portanto, as minorias são forças de bloqueio (termo que ficou a dever-se ao inefável Cavaco Silva). E mais; um tal ministro Santos diz mesmo que deve ser alterada a lei que prevê que, imagine-se, têm voto na matéria os municípios locais representativos dos cidadãos mais directamente afectados pela construção do aeroporto. O essencial é garantir que a decisão de instalar o aeroporto no Montijo tomada por decreto-lei em boa hora aprovado pelo Conselho de Ministros é indiscutível porque representa o interesse de todos.
Não admira. Levar em conta que a democracia é o poder de todos respeitados nas suas diferenças e não de um grupo indigitado para o Governo pelo chefe de um partido que ganhou as eleições não cabe na cabeça limitada daquele comissário. Imaginar que o parecer dos naturais do Montijo ouse contrariar tão iluminada opinião é insuportável.
Não vale a pena tentar explicar-lhe o que é o Estado-de Direito. E que o Estado-de Direito (note-se bem, de Direito) não se confunde com o que o Conselho de Ministros aprovou. Passa por outros parâmetros mais elevados. Não vale a pena o esforço. Os saudosos Marat e Robespierre (saberá ele quem foram?) patrocinariam tão indiscutível decisão ou não fosse ela aprovada por um pretenso sucedâneo do Comité du Salut Public.
O grave disto é que o Governo não entende que a democracia vive do respeito pelas diferenças de opinião. E que estas passam por respeitar as opções municipais. A democracia não é a vontade de um governo contra os locais. É o contrário; é a convergência possível entre todos. Não é assim preciso alterar a lei. A lei está muito bem como está. O que é preciso é negociar. E para tanto é preciso ouvir os locais. Se o Governo negoceia, e bem, com tantos porque razão não o faz com os munícipes da margem sul? Serão eles metecos? Não. Creio que não foi essa a intenção dos doutos membros do Conselho de Ministros até porque eles não fazem a menor ideia que os metecos eram os estrangeiros sem dignidade de cidadãos nas cidades gregas (salvo em Esparta).
Claro está que o Governo sabe utilizar a seu favor as (outras) minorias que lhe dão jeito. Está a pensar obviamente nas eleições legislativas. E desta contabilidade não faz parte o resultado de uma remota opinião municipal. Não vale a pena contabilizar os longínquos votos da margem sul. Muito mais importante é estender a mão e fazer a vontade a outras minorias mais à mão como os lobbies de banqueiros arguidos por crimes económicos e fraudes, os freaks, os juízes corruptos, os emigrantes ilegais e os premiers venus.
Ora a democracia não é apenas contabilidade eleitoral. É respeito. Respeito por quem? Pelos que são diferentes de mim, individualmente considerado, e pelos que vivem noutras realidades; respeito pelo outro, em suma. A democracia não suporta a contraposição entre nós, suposta maioria, e «eles», supostos suburbanos ou minorias. Não. A democracia vive dos trunfos (respigo o termo, com a devida vénia, de um distinto e verdadeiro constitucionalista) contra uma maioria abstracta que existe só contabilisticamente e que dá jeito ao Governo invocar depois de tomar posse como arma de arremesso contra os diferentes e os locais. Nós somos eles e eles são parte de nós próprios.
Por menos do que isto rebentou a Maria da Fonte. E vai voltar a rebentar, só que diferente maneira. Mas, coitados, o que eles sabem da história de Portugal é o que ouviram e mal das deformações que lhes ensinaram.