Pelo menos duas vezes por ano encontramos nas algibeiras dos casacos objectos de uma civilização de que já não nos lembrávamos. Perguntamo-nos o que terá alguém ido fazer a Barcelos; e como seria uma certa peça de teatro; e para que terá alguém querido comprar saibro, ou funcho (ou fecho?) São de facto recibos, bilhetes e listas de compras que acham refúgio nas algibeiras mais remotas.

Estas ocorrências, que são comuns, dão-nos uma impressão que não é: trata-se da impressão de que uma outra pessoa terá tido acesso àquilo a que actualmente, e se calhar com largueza, chamamos as nossas algibeiras. A impressão naturalmente é enganadora, porque os casacos estiveram fechados durante duas estações seguidas, fora do alcance de outras pessoas. Mas como qualquer arqueólogo sentimo-nos responsáveis por aquilo que encontrámos; e aliás acreditamos que aquilo que encontrámos nos estava destinado. Temos assim relutância em deitar fora o que encontramos.

Temos também dificuldade em explicar que a nossa afeição por esses artefactos não é uma afeição interesseira por coisas que já fizemos. Não nos ocorre reunir materiais para uma exposição retrospectiva das nossas vidas na Biblioteca Municipal; ou quase nunca mandar imprimir um livro onde fixemos para benefício das pessoas a quem o ofereceremos todos os aspectos na nossa glória, mesmo os mais ínfimos. Nas listas de compras, onde às vezes ainda conseguimos reconhecer a nossa letra, ou a letra de alguém que no-las terá dado, esse facto não nos comove e não nos exalta: nada realmente nos comove ou exalta; mas tudo nos intriga.

Muitos filósofos observaram que sabemos que continuamos a ser a mesma pessoa porque nos lembramos de quem éramos há uns tempos. A teoria porém só pode ser falsa, ou quando muito descreverá uma experiência que não é forçosa. Um demente continua a ser quem sempre foi, embora demente. E, no que agora nos ocupa, sabemos sem margem para dúvidas que existe uma continuidade entre quem terá andado a remexer nos nossos casacos e quem encontrou o que lá foi posto: por exclusão de partes sabemos que só pôde ter sido a nós que aquelas coisas aconteceram.

O que a arqueologia a que duas vezes por ano somos forçados indica será decerto que nem sempre nos lembramos de quem somos; de tudo o que fizemos; e de todos os pormenores das nossas vidas. Esses lapsos estamos dispostos a perceber e a desculpar: são relativamente normais. Mas indica também, para além disso e para alívio nosso, que somos muito mais do que aquilo de que nos lembramos; e que fizemos coisas exactamente como as pessoas que vemos à nossa volta a fazer coisas que não nos lembramos de ter feito; que afinal cada nova estação não é princípio de coisa nenhuma; que já tivemos uma vida inteira, já fomos a Barcelos e ao teatro, e já comprámos funcho (ou fecho.)

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