A União Europeia está mais próxima de um Estado ou de uma organização internacional? Onde acaba o poder de Bruxelas e começa o dos Estados-membros? Se o presidente do Conselho Europeu e a presidente da Comissão Europeia visitarem um país vizinho, quem se senta no cadeirão e quem fica no sofá?

Uma dessas perguntas não é exatamente igual às outras, mas arrisca entrar no cânone europeu. Normalmente, um incidente protocolar não sobrevive um mês no centro das discussões, mas o momento turco, para além de constrangedor para todos os envolvidos, é muito útil como parábola das fragilidades da atual União Europeia.

Em primeiro lugar, expõe o problema doméstico da União, de organização eficiente e inteligível das suas instituições. Essa imperfeição já foi enunciada de várias maneiras, da célebre “Quando quero falar com a Europa, devo ligar a quem?” (a pergunta é normalmente atribuída a Henry Kissinger, mas é provavelmente apócrifa), até ao humor involuntário nas imagens da atribuição do Nobel da Paz à União Europeia, que têm mais presidentes do que medalhas. Em parte, o Tratado de Lisboa justificava-se como uma tentativa de responder a essa falha reconhecida, mas a filosofia de acrescentar complexidade e transferir mais poderes não era nova e não resultou.

Para a presidente von der Leyen, por outro lado, o que se passou na Turquia foi mais um marco da sua luta feminista – e subentende-se que não só contra o presidente Erdogan como também contra o presidente Michel. Talvez tenha sido. As mulheres turcas, por exemplo, já estiveram mais satisfeitas. É, aliás, objetivamente impossível provar o contrário, isto é, que ter uma mulher a presidir à Comissão Europeia não teve qualquer influência em qualquer escolha de mobiliário, mas vale a pena considerar essa hipótese. Em encontros anteriores, o presidente Juncker (um homem) não teve dificuldades para se sentar num lugar adequado, mas o mesmo pode ser dito da chanceler Merkel (uma mulher). É plausível que o insulto turco se justifique antes com a leveza política de von der Leyen, que para além de uma mulher era uma impopular ministra alemã quando foi repentinamente exportada para a Comissão Europeia.

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Há muito que os Estados-membros podem fazer pela solidez do conjunto. Desde logo, escolhendo melhor os seus representantes: num dia bom, Charles Michel parece uma reprise pouco imaginativa do Inspetor Clouseau, enquanto Ursula von der Leyen se mostra perfeitamente satisfeita se for amada pela imprensa por ser como é e não pelo que faz. É pouco para as responsabilidades que têm, mas não explica tudo. No futuro vale a pena repensar o cargo de presidente do Conselho Europeu, tornando-o novamente rotativo no âmbito da Presidência da União Europeia ou, numa versão com menor autonomia, tornando-o inerente ao de presidente da Comissão Europeia.

Mas o melhor a fazer com as instituições europeias é protegê-las da tentação do poder. Até hoje, a história da integração é a da quase ininterrupta transferência de competências. É preciso perceber o que resulta. Há muito que a União Europeia faz bem, como a negociação de acordos comerciais ou a regulação em matérias que nenhum Estado-membro pode, por si, efetivamente determinar. Para empresas e cidadãos, esse esforço poupa custos e garante proteções mais equitativas. No entanto, há também muito que a União Europeia não consegue fazer, não faz de forma eficiente ou não pode, por natureza, fazer no futuro. A União Europeia não serve para substituir a democracia representativa nacional, comprar e distribuir vacinas de forma competitiva ou para criar e executar uma política externa própria.

Essa é a segunda lição de Ancara. A aventura de uma Comissão Europeia que participa sozinha na política internacional não funcionou e prejudicou a imagem de competência da União. O caso do sofá teve repercussões exageradas, apesar de alimentadas pela própria presidente, mas sucede ao embaraço de outro alto membro da Comissão Europeia numa visita à Rússia. Desta Comissão geopolítica o grande sucesso é, porventura, pedagógico: centralizar a política externa ameaça expor e agravar as fragilidades internas da União, ao mesmo tempo que acaba com ilusões sobre o real valor das instituições fora de Bruxelas. Para já, o mundo acha que a geopolítica não dispensa as nações. Entender essa mensagem é proteger a União Europeia.

João Diogo Barbosa, jurista (@jdiogospbarbosa no Twitter), é um dos comentadores residentes do Café Europa na Rádio Observador, juntamente com Henrique Burnay, Madalena Meyer Resende e Bruno Cardoso Reis. O programa vai para o ar todas as segundas-feiras às 14h00 e às 22h00. 

As opiniões aqui expressas apenas vinculam o seu autor.

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