Voltei a encontrar o Cónego Jeremias bastante alterado, desta feita à conta do Relatório de Portugal para o Sínodo 2021-2023, cuja publicação suscitou muitos comentários, sobretudo entre os fiéis que não se revêem nesse texto, que deveria ser representativo da Igreja portuguesa. A este propósito, perguntei-lhe:

Senhor Cónego, não lhe parece que as pessoas que criticaram o Relatório estão a dividir a Igreja, ao pôr cristãos contra os Bispos e padres contra padres?!

Ó meu amigo, não me venha com essa história de que os que criticaram esse texto, que nem sequer é do magistério, estão a dividir a Igreja! Também no PREC, quando alguém reagia às medidas autoritárias dos governantes, era apelidado de reacionário e fascista! Isso lembra-me os meus tempos de escola primária, em que havia um rufia, o Alcino, que passava a vida a bater nos outros e, quando alguém lhe respondia da mesma forma, o cobardolas ia logo fazer queixinhas à professora!

E que lhe parece o facto de esta consulta ter sido feita também àqueles “que não frequentam o espaço eclesial e que não estão por dentro da dinâmica paroquial”, ultrapassando-se assim a distinção entre crentes e não-crentes?

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– Mas, trata-se de perguntar, aos que não crêem, no que nós devemos crer?! Isso é tão absurdo como pedir explicações de português a um chinês analfabeto! É como ter aulas de matemática de quem não sabe a tabuada! Isto lembra-me um médico que, quando intuía alguma indecisão no paciente, dizia: Se quiser uma segunda opinião, saiba que a pessoa que mais sabe desta questão clínica é a porteira do seu prédio!

O Relatório reconhece que, embora a caminhada sinodal tenha sido “acolhida com entusiasmo e expectativa”, verificou-se uma “grande dificuldade em chegar a um consenso em temáticas controversas”.

– Controvérsias sempre as houve, há e haverá, mas não devem ser discutidas na praça pública, mas nas sedes próprias – Academias e Faculdades de Teologia, Dicastério para a Doutrina da Fé e, até, Concílios ecuménicos – como sempre se fez na Igreja. Ao Papa foi dada a missão de confirmar os seus irmãos na fé (Lc 22, 31-32). Pode consultar os fiéis do mundo inteiro, mas o resultado dessa consulta não o vincula, não o desresponsabiliza, nem o substitui no exercício do seu magistério eclesial.

O Relatório constatou que a nossa é “uma Igreja com uma atitude demasiado hierárquica, clerical, corporativa” e, por isso, sugere que as comunidades cristãs tenham “um papel mais activo, mesmo na escolha dos bispos e na transferência dos párocos”.

– Isso é tudo muito bonito, mas há instituições que exigem uma hierarquia: no caso da Igreja, essa estrutura não é uma opção humana, mas uma exigência do seu divino fundador, Jesus Cristo!

Pode haver alunos mais inteligentes do que os seus professores, mas as instituições académicas só funcionam se se respeitar a autoridade. Se os discípulos escolhessem os docentes, se calhar preferiam os menos exigentes, para não terem de estudar: nem sempre a escolha democrática é a mais acertada, como se vê na política.

Mas o Senhor Cónego não acha que as comunidades cristãs se identificam melhor com os pastores que têm com elas mais afinidades?

– Está-me a dizer que o pároco de um bairro social, onde há muitos imigrantes, deve ser, também ele, imigrante?! Ou que, numa freguesia de população predominantemente branca, um padre de cor não pode exercer o seu ministério?! Nesse caso, a Igreja deixaria de ser católica, que quer dizer universal, para ser racista e xenófoba, por discriminar as pessoas pela sua raça e etnia! Se os pastores devem identificar-se com as suas comunidades, os capelães hospitalares deveriam ser doentes, e os capelães das prisões, presidiários!

O Relatório também sonha com “uma Igreja que repense a participação de todos os baptizados, independentemente da sua vida afectivo-sexual, que é vivida, muitas vezes, como um tabu”.

– Isso não é um sonho, mas um delírio, senão mesmo um pesadelo! Então um baptizado que é polígamo, ou pedófilo, como casos houve, sobretudo entre os leigos, mas também com sacerdotes, deve participar na vida comunitária da Igreja como se nada fosse?! Isso seria o cúmulo da incoerência e da hipocrisia eclesial! Com certeza que na Igreja há lugar para todos, também para os que se encontram numa situação irregular, desde que tenham um desejo sincero de viver de acordo com a fé. O que não faz sentido é negar, na teoria ou na prática, a doutrina da Igreja e, não obstante, afirmar-se católico. São Paulo, sobre um cristão que vivia incestuosamente, disse: “Por carta vos escrevi (…) que não tivésseis comunicação com aquele que, chamando-se irmão, fosse impudico (…); com este tal nem comer deveis” (1Cr 5, 1-13).

Mas não lhe parece, Senhor Cónego, que é preciso chegar, como se escreve no Relatório de Portugal para o Sínodo, a “uma Igreja de portas abertas, que abrace a diversidade e acolha todos, excluindo as atitudes discriminatórias que deixam à margem a comunidade LGBTQIA+ e os divorciados recasados”?

– Há que distinguir os ‘recasados’ dos que fazem parte da “comunidade LGBTQIA+” e professam uma ideologia anticristã e anti família. Os primeiros são católicos e, em certas circunstâncias, até podem regressar à prática sacramental, como se esclarece nas encíclicas Familiaris Consortio e Amoris Laetitia; já os segundos só poderão ser admitidos na Igreja se confessarem a fé, que essas ideologias contradizem.

O caminho percorrido pelos grandes santos não foi o da condescendência com as modas mundanas, mas o da conversão, afirmando, com a sua vida e palavra, a doutrina cristã. Graças a esse seu testemunho, foram, como Jesus Cristo, sinal de contradição para o seu tempo (Lc 2,34) e, como João Baptista, luzes ardentes e luminosas (Jo 5, 35), que ainda hoje brilham no firmamento da Igreja e do mundo.

Pelo contrário, os que se deixaram corromper pelo mundo, para o não contradizerem, são como o sal que perdeu o seu sabor e que “para nada mais serve senão para ser lançado fora e pisado pelos homens” (Mt 5, 13).

O Papa Francisco lançou o desafio de uma Igreja em saída, ou seja, mais missionária porque mais coerente. Uma “Igreja de portas abertas, que abrace a diversidade e acolha todos, excluindo as atitudes discriminatórias que deixam à margem a comunidade LGBTQIA+” significaria, certamente, não uma Igreja em saída, mas a saída da Igreja das mulheres e homens de fé.