Fiducia supplicans (FS) é uma Declaração do Dicastério para a Doutrina da Fé, sobre o sentido pastoral das bênçãos, que foi aprovada pelo Papa Francisco, no passado 18-12-2023. Já são conhecidas algumas das reacções suscitadas por esta Declaração, tanto por parte das inúmeras Conferências Episcopais, nomeadamente africanas, que recusaram a sua aplicação nos seus países, como pelas associações LGBT, que festejaram o que dizem ser a aprovação pontifícia das uniões de pessoas do mesmo sexo.

Apesar de a FS declarar que “a presente Declaração permanece firme na doutrina tradicional da Igreja sobre o matrimónio, não permitindo nenhum tipo de rito litúrgico, ou bênção similar a um rito litúrgico que possa causar confusão” (FS, Apresentação, 3º§), a verdade é que a confusão, a nível mundial, está instalada. A prova é que Chris Christie, possível candidato republicano às eleições presidenciais norte-americanas, declarou que, por causa desta Declaração, apoiará os casamentos entre pessoas do mesmo sexo (Infocatólica, 2-1-2024).

Esta Declaração pretende “oferecer uma contribuição específica e inovadora ao significado pastoral das bênçãos, que permite ampliar e enriquecer a compreensão clássica das bênçãos estreitamente vinculadas a uma perspectiva litúrgica” (FS, Apresentação, 3º§). No entanto, uma bênção não litúrgica parece ser uma contradição nos termos e, mesmo que seja em tese possível, é problemática a competência da Igreja sobre uma realidade que a instituição eclesial reconhece como não litúrgica.

Bendizer é, etimologicamente, dizer bem. Antigamente, era frequente que os pais e padrinhos dessem a sua bênção aos filhos e afilhados. Este gesto supunha, necessariamente, uma atitude paternal de afecto e aprovação. Como a Declaração recorda, “as bênçãos têm por destinatários as pessoas, os objectos de culto e de devoção, as imagens sagradas, os lugares de vida, de trabalho e de sofrimento, os frutos da terra e do trabalho humano, e todas as realidades criadas que remetem para o Criador e que, com a sua beleza, o louvam e bendizem” (FS, nº 8), com a condição de que “não contradigam a norma, nem o espírito do Evangelho” (Ritual Romano, nº 13; FS, nº 10).

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Todos os seres humanos, porque são imagem e semelhança de Deus, podem ser abençoados. Os fiéis que não devem comungar por não estarem na graça de Deus, podem, com um simples gesto, como é o de cruzar os braços sobre o peito, pedir nesse momento a bênção, que nunca lhes é negada pelo celebrante. Na escola profissional de que sou capelão, há muitos que assim procedem, porque não são baptizados, ou, sendo cristãos, não praticam, ou ainda vivem em situações irregulares, mas espontaneamente participam na Eucaristia semanal. A celebração é para “todos, todos, todos”, mas a comunhão é só para os que estão em condições de a receber (cf. 1Cr 11, 23-32), sem que os restantes se sintam, por este motivo, excluídos ou discriminados. Pelo contrário, todos, sem excepção, se sabem acolhidos e respeitados na sua diferença.

Mas, quando se abençoa um grupo de pessoas, está-se também a bendizer a sua relação. Por isso, não se pode equiparar a bênção dada, individualmente, a A e a B, com a bênção dada à união de A e B. Se um membro de uma associação pró-aborto, ou a favor da eutanásia, pede a bênção a um sacerdote, pode recebê-la, se tiver o firme propósito de deixar essa associação. Mas nenhum padre pode benzer uma associação de abortistas, ou de defensores da eutanásia, porque estaria necessariamente a legitimar práticas que são diametralmente opostas à doutrina e à moral católicas.

Ora, a referida Declaração admite “a possibilidade de abençoar os casais em situações irregulares e os casais do mesmo sexo, sem aprovar oficialmente o seu status, nem alterar de modo nenhum os ensinamentos perenes da Igreja sobre o Matrimónio” (FS, Apresentação, 4º§).

É muito louvável o propósito de não aprovar situações objectivamente contrárias à moral cristã, “nem alterar de modo nenhum os ensinamentos perenes da Igreja sobre o Matrimónio”, mas, a referência aos “casais em situações irregulares” e aos “casais do mesmo sexo” (FS, Apresentação, 4º§ e nº 31-41) é já uma tácita aceitação dessas uniões, como aliás entenderam desde logo os que vivem nessas situações. O texto é, com efeito, ambíguo porque, enquanto o Responsum da Congregação para a Doutrina da Fé a um dubium sobre a bênção de uniões de pessoas do mesmo sexo, de 22-2-2021, usava a expressão “uniões de pessoas do mesmo sexo”, a FS menciona “casais em situações irregulares” e, até, “casais do mesmo sexo”.

Se estas uniões, não conjugais, são referidas pela Igreja como ‘casais’, é porque a suprema autoridade eclesial as aceita como se fossem matrimoniais, não o sendo, embora aparentando que o são. Com esta terminologia dúbia, o Dicastério para a Doutrina da Fé está a equiparar as uniões irregulares e de pessoas do mesmo sexo às uniões matrimoniais, as únicas que, segundo a doutrina e a praxe bimilenária da Igreja, constituem verdadeiros casais. Forçoso é também admitir que, para esse organismo da Santa Sé, tanto a dita irregularidade, como o facto dos alegados cônjuges serem do mesmo sexo, não prejudica a analogia com o verdadeiro casamento. Ora essa equiparação manifestamente contradiz o propósito de não alterar “os ensinamentos perenes da Igreja sobre o Matrimónio”. Com efeito, o perene ensinamento da Igreja – que era suposto o Dicastério para a Doutrina da Fé proclamar e defender – afirma, pelo contrário, que o matrimónio e, portanto também, o casal, é apenas, nas palavras do Papa Francisco, a “união exclusiva, estável e indissolúvel entre um homem e uma mulher, naturalmente aberta à procriação de filhos” (Resposta do Papa Francisco aos dúbia propostos por dois Cardeais, 11-7-2023; FS, nº 4).

Segundo o Prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé, “esta reflexão teológica” está “baseada na visão pastoral do Papa Francisco”, que a aprovou (FS, Apresentação, 4º§), mas contradiz o referido Responsum, de 22-2-2021, do mesmo Santo Padre. Com efeito, neste Responsum, à pergunta “a Igreja dispõe do poder de abençoar as uniões de pessoas do mesmo sexo?”, o actual Papa, através do então Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, Cardeal Luís Ladaria, respondeu “negativamente”. Mais ainda: o “Sumo Pontífice Francisco, no curso de uma audiência concedida ao […] Secretário desta Congregação, foi informado e deu o seu assentimento à publicação do mencionado Responsum ad dubium, com a Nota explicativa anexa”.

Na verdade, a FS não só é disruptiva em relação ao anterior magistério pontifício do Papa Francisco, ao contradizer o aludido Responsum, como fere a comunhão eclesial: inúmeras conferências episcopais, bem como muitos cardeais e bispos manifestaram já a sua discordância. Por isso, o Cardeal Prefeito publicou, no passado dia 4, uma nota de imprensa que, ao mesmo tempo que afirma a adesão “à doutrina tradicional da Igreja sobre o matrimónio”, também reconhece “a novidade desta Declaração”; insiste na distinção entre as “bênçãos litúrgicas ou ritualizadas” e as “espontâneas ou pastorais”; e repete as referências aos “casais em situação irregular” e aos “casais do mesmo sexo”.

Para justificar a incompatibilidade da FS com o precedente magistério pontifício, alega-se que esta Declaração não é doutrinal, mas pastoral: “A Igreja também deve evitar apoiar a sua praxe pastoral na rigidez de alguns esquemas doutrinais ou disciplinares, sobretudo quando provocam ‘um elitismo narcisista e autoritário, onde, em vez de evangelizar, o que se faz é analisar e classificar os outros, em vez de facilitar o acesso à graça, gastam-se as energias em controlar’ (Papa Francisco, Ex. Ap. Evangelii gaudium, 24-11-2013, nº 94).” (FS, 25).

Mas, uma actuação pastoral que não está alicerçada numa doutrina consistente é uma mera expressão circunstancial do poder clerical, susceptível de ser alterada por outra decisão autocrática, em função de uma nova conjuntura eclesial. Se o Responsum de 2021 foi alterado pela FS de 2023, quem sabe se, em 2025, o mesmo Dicastério não vai publicar uma nova declaração, invalidando a FS de 2023, como esta revogou agora o Responsum de 2021?! Se o que eram, em 2021, meras uniões, são agora, para a FS, verdadeiros casais, nada impede que, em 2025, sejam casamentos, mas não matrimónios e, em 2027, sejam já autênticos matrimónios, senão litúrgicos, pelo menos pastorais!

Esta ligeireza do dicastério romano, que é o guardião da fé, é, decerto, alarmante. Este procedimento ziguezagueante, para não dizer contraditório, confunde os pastores e os fiéis, sobretudo os que lutaram para não incorrerem em situação de pecado, e que agora vêem abençoada a união que, desde sempre, lhes foi apresentada pelo magistério da Igreja como pecaminosa e incompatível com a vida cristã e a prática sacramental. As bênçãos, como a comunhão, não são prémios de bom comportamento mas, se também as podem receber os que vivem em situação irregular, corre-se o risco da sua banalização.

Não em vão Jesus de Nazaré exigiu à sua Igreja clareza e determinação no seu discurso: “Seja o vosso falar: Sim, sim; não, não. Tudo o que disto passa procede do maligno” (Mt 5, 37). Os ensinamentos de Cristo, ao contrário das opiniões humanas, caracterizam-se pela sua perenidade: “o céu e a terra passarão, mas as minhas palavras não passarão” (Mt 24, 35). No seu evidente desejo de agradar ao mundo, esta Declaração parece abdicar do propósito de conversão pregado por Cristo, tanto quando proclamou, no início do seu magistério, “fazei penitência, crede no Evangelho” (Mc 1, 15); como quando disse à pecadora arrependida: “vai, e não peques mais” (Jo 8, 11).

Que se pode, então, dizer de estas “bênçãos que se oferecem a todos, sem pedir nada” (FS, nº 27)? Trata-se de bênçãos, que não são bênçãos litúrgicas, mas que parecem bênçãos litúrgicas, que são dadas por padres, mas que não parecem padres, porque não podem estar paramentados, a casais, que não são casais, mas que parecem e vivem como se fossem casais. Está claro, não está?!