Dados os tempos turbulentos em que nos encontramos, corro o risco de, aquando da publicação deste artigo, o mesmo já se encontre desatualizado. Não faz mal, o que interessa é a intenção, diriam uns. Na verdade, as pessoas dizem que as intenções é que contam, porque todos nós “acertamos”, ou agimos corretamente, aos olhos das intenções, até mesmo o governo na escolha dos seus membros. Na vida real não podemos julgar uma pessoa pelas suas intenções, mas sim pelas suas escolhas e as pelas consequências daí resultantes. Não podemos fazer uma escolha sem termos em perspetiva as consequências que daí resultam e sem termos a humildade de reconhecer que somos responsáveis pelas mesmas, ainda para mais tendo conhecimento prévio delas.

Aplicamos esta forma de pensar a tudo na vida (ou pelo menos devemos), seja na escolha de um aluno para estudar uma certa disciplina em detrimento de outra, seja até uma empresa decidindo investir num determinado projeto, em detrimento de outro. Se os agentes económicos e da sociedade têm particular atenção a estes mecanismos de responsabilidade pelas decisões que tomam (accountability), porque não têm os governantes? Aliás, não se deveria exigir a eles maior responsabilidade? Ao final do dia, são eles que gerem as nossas vidas e o dinheiro com que todos nós contribuímos.

Não querendo comentar a “espuma dos dias”, os mais recentes “casos e casinhos” têm sido um exemplo notório da falta de consideração, respeito e atenção para com as pessoas que eles servem – os portugueses. Felizmente, alguns e algumas, com dignidade própria, assumem as consequências das suas escolhas e decidem sair pelo próprio pé. Outros são mais persistentes, e por lá decidem continuar esperando que uma onda maior de “casos e casinhos” os leve.

“Vão ser quatro anos, habituem-se!”, dizia o primeiro-ministro. A verdade é que o primeiro-ministro se esqueceu de referir que essas palavras seriam acompanhadas de maior “desgovernação”, de mais instabilidade política (mesmo com maioria absoluta) e de mais demissões. “O feitiço virou-se contra o feiticeiro”, diria. Aquele que, do alto do seu ego, pregava aos outros que se resignem, que se habituem a esta forma de estar e de atuar por parte do governo e do primeiro-ministro, parece agora amaldiçoado pelas suas próprias palavras. Em menos de seis meses, o primeiro-ministro deixou de falar da possível ida para um cargo europeu, para que agora só fale desses “casos e casinhos”, que tanto recusava comentar. Esperemos que as últimas semanas tenham sido luminosas o suficiente para que o governo, o primeiro-ministro, bem como o partido do governo, percebam que ao final do dia quem eles servem são os portugueses, e não eles mesmos.

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Hoje, finalmente, parece que os portugueses acordaram para este assunto. Só esperemos que continuem atentos, mesmo até depois do fim desta “trágica comédia”. Acima de tudo, esperemos que os portugueses apliquem esta exigência de transparência, responsabilidade e escrutínio às pessoas que elegem para os representar, agora e no futuro. Não podemos esquecer que no passado ocorreram situações semelhantes a esta, seja com o partido do atual do governo, seja com outros partidos. Esperemos que, com isso, todos os intervenientes políticos, e todos aqueles que um dia se desejam juntar a esta tão nobre causa, aprendam com os seus próprios erros e com os erros de outros.

Não percamos esta oportunidade para realmente nos lembrarmos de quem e como queremos que nos representem, com que princípios e com que valores. A propagação e disseminação destes “casos e casinhos” apenas destrói a perceção das pessoas sobre as instituições, levando-as a que se aproximem de partidos que se aproveitam deste descontentamento.

Aproveite-se esta oportunidade para construir mecanismos que fiscalizem os governantes nos vários momentos. Veja-se o caso da União Europeia em que todos os futuros membros da comissão passam por um escrutínio público que vai desde a sua vida profissional e civil, passando pelo conhecimento das pastas que vão tutelar. Não criemos mecanismos que desvirtuem a responsabilidade das escolhas, mas sim mecanismos que auxiliem a escolha, através do escrutínio e da transparência, evitando situações que tantos danos causam.

Se há um ano estávamos em crise política porque o partido do governo não se entendia com os outros partidos, hoje em crise política estamos, depois de uma maioria absoluta, porque o governo é incapaz de se entender com ele mesmo.