Episódio. Um grupo de 70 pessoas de etnia cigana, composto por duas famílias diferentes, vivia no Parque de Estágio (Vidigueira), em instalações que a Câmara Municipal havia mandado construir. Certo dia, elementos dessas duas famílias envolveram-se numa rixa entre si, decidindo que, para fins de serenar os ânimos, ficariam uns dias sem contactar – e, portanto, ambas as famílias decidiram passar uns dias num outro local, para depois poderem voltar e retomar as suas rotinas. Tudo aconteceu no dia 13 de Junho. Quando quiseram voltar, não puderam. É que, no dia 17, a Câmara Municipal, apercebendo-se da sua ausência, contratou um serviço para arrasar as instalações onde vivia esta comunidade. Arrasar mesmo: demolir o armazém que servia de instalações e revirar o terreno para impossibilitar acampamentos. Destruir tudo. Expulsar todos. Sem aviso prévio ou prazos. E feito com urgência, não fosse alguém voltar antes de tempo. Ora, quando de facto alguém voltou, já tudo estava perdido – casa, electrodomésticos, roupa e outros bens pessoais. Dezenas de pessoas, incluindo 35 crianças, ficaram desalojadas. Tudo em nome do cumprimento da lei, disse a Câmara. Uma Câmara do PCP.

Para além de insólito, o episódio contém um importante facto político: a exposição da contradição entre o discurso moralista da esquerda radical e a forma como exerce o poder executivo quando a ele tem acesso. Existem, claro, mais exemplos, incluindo do Bloco de Esquerda – defende-se a abolição das touradas, mas depois promovem-se espectáculos tauromáquicos (em Salvaterra de Magos). Enfim, a diferença é apenas de escala: o PCP tem mais câmaras do que o BE e, consequentemente, mais contradições.

Sublinhe-se o ponto: esta contradição é importante, não por motivos de intriga, mas porque ilustra bem como a questão dos entendimentos à esquerda, que marcará os próximos meses, é uma falsa questão. E como, por isso, é enganador acreditar que António Costa era a peça que faltava para nascerem alianças à esquerda.

Os partidos à esquerda – PCP e BE – vivem de um moralismo que é, por definição, incompatível com o exercício do poder à escala nacional, onde o contraditório é muito mais violento do que na Vidigueira. Eles sabem-no e é mesmo assim que eles preferem ser. É por isso que o PCP coloca o PS ao mesmo nível do que PSD e CDS. E é por isso que o líder parlamentar do BE vai a congresso com uma moção focada em não fazer alianças com o PS. Não é nada de novo, claro. Mas o ponto é mesmo esse: António Costa passou a imagem de que era o único político capaz de quebrar o bloqueio de alianças à esquerda. Ora, bastou passarem dois dias da sua vitória eleitoral para a esquerda radical lhe fechar a porta.

O que sobra para além desses partidos são movimentações até agora inconsequentes – o LIVRE, de Rui Tavares, e o movimento de Daniel Oliveira e Ana Drago. Ora, todas essas iniciativas são muito anteriores ao novo PS de António Costa e nunca dependeram dele. Aliás, são, fundamentalmente, projectos pessoais de dissidentes políticos que estão, há pelo menos um ano, desejosos de fazer parte de uma solução governativa. Com o PS, inevitavelmente. Mas com ou sem Costa. Assim, se estes movimentos conseguirem um resultado que os torne relevantes no pós-legislativas 2015 (e o PS vencer as eleições), António Costa terá o que nunca um líder do PS teve: um parceiro de coligação à esquerda. Caído do céu.

O cenário é, portanto, ideal para António Costa. Sem mexer um dedo, ser-lhe-á reconhecido o mérito de uma eventual aliança ou desculpado o fracasso nos entendimentos por via da inflexibilidade alheia. Costa só tem de esperar sentado e ver o que acontece. Sim, chama-se ter sorte. O que é diferente de ter mérito.

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