“Cinco meses depois de o pacote legislativo da transparência ser aprovado na Assembleia da República e quando a respectiva comissão parlamentar está agora a definir a regulamentação das declarações de registo de interesses, o PAN vai entregar […] um projecto de lei para que os políticos e altos cargos públicos sejam convidados a assumir se pertencem a ‘organizações de carácter discreto’ como a maçonaria e a Opus Dei” (Público, 14-12-19).

O PAN começou por ser uma incógnita no cenário político português porque, ao identificar-se com uma questão transversal, como é a defesa dos animais e a preservação da natureza, não era clara a sua identidade ideológica. Mas, como é óbvio, também os partidos que aparentam ser neutros têm uma ideologia, que é a que decorre da sua praxis política. O PAN, com esta sua iniciativa legislativa, bem como com o seu propósito de rever (ou denunciar?) a Concordata, está a evidenciar-se não só como um partido anticatólico, mas também contrário à liberdade religiosa.

Na realidade, trata-se de um partido de natureza populista e com alguns tiques autoritários. Desengane-se quem pensava que o PAN apenas defendia as florzinhas, os cãezinhos e os gatinhos: na realidade quer impor, na sociedade portuguesa, uma nova cosmovisão. Mais do que um partido político, é uma nova cultura ou crença, porventura mais sentimental do que racional. O PANteísmo pretende criar um mundo novo, em que o animalismo substitua o humanismo, e o ser humano seja apenas mais um animal, igual aos outros em direitos e obrigações.

Um exemplo paradigmático da tendência autoritária do PAN é a sua atitude em relação às touradas. Aos militantes deste partido, como a qualquer outro cidadão, assiste o direito de ser a favor ou contra as touradas, a pesca desportiva, a caça ao javali, o circo, os concursos de camélias, os jardins zoológicos, o tiro aos pombos e as corridas de cães. O que já não parece aceitável é que haja forças políticas que queiram implementar autoritariamente as suas opções. O problema do PAN não é ser contra as touradas, o que é certamente legítimo, mas ser contra as pessoas que gostam de touradas, ou seja, contra o pluralismo e a liberdade. De facto, esta força política tem uma atitude potencialmente totalitária, na medida em que pretende obrigar a sociedade portuguesa a seguir os seus critérios.

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Como toda a gente sabe, o Opus Dei não é nenhuma organização secreta, ou discreta, mas uma prelatura pessoal da Igreja católica, ou seja, uma espécie de diocese internacional. As dioceses obedecem, em geral, a um critério territorial, enquanto as prelaturas pessoais prestam um serviço pastoral especializado por alguma particularidade dos fiéis, ou por uma específica missão eclesial, como é, no caso desta prelatura, a promoção cristã do laicado. De modo análogo a como os bispos diocesanos são instituídos por mandato pontifício, também é o Papa quem nomeia o prelado do Opus Dei, que dele depende através da Congregação para os Bispos, e que exerce o seu múnus eclesial em comunhão com o episcopado das dioceses em que esta instituição da Igreja desempenha o seu apostolado.

A questão do suposto ‘secretismo’ ou ‘discrição’ é uma não questão: se alguma entidade pública, nomeadamente um partido político com assento na Assembleia da República, tiver alguma dúvida sobre a natureza, fins e actividades da prelatura do Opus Dei, pode e deve esclarecer-se com a própria instituição, ou com a Nunciatura Apostólica, que representa oficialmente a Santa Sé junto das autoridades portuguesas e que, melhor do que ninguém, pode informar qualquer organização, pública ou privada, sobre a prelatura, que é uma instituição eclesial de direito pontifício.

Questionar, em pleno século XXI, o suposto ‘secretismo’ ou ‘discrição’ do Opus Dei, ou equiparar esta instituição da Igreja católica à maçonaria, é tão anacrónico como reeditar, em 2020, as calúnias que levaram, em 1759 e em 1910, à expulsão dos jesuítas. Não obstante o evolucionismo, o PAN parece ter regredido aos primeiros séculos da era cristã, quando estava na moda atirar os fiéis às feras. Claro que hoje essa prática não seria aceitável, não por consideração pelos crentes, mas por respeito pelos animais.

A verdade é que a prelatura do Opus Dei é tão ‘secreta’ ou ‘discreta’ como qualquer diocese católica. São públicos os nomes dos bispos diocesanos e dos membros das cúrias diocesanas, como públicos são também os nomes do prelado do Opus Dei e dos seus representantes, ou vigários, em todas as circunscrições em que realiza, em comunhão com as igrejas locais, as suas actividades pastorais. São públicos os nomes dos sacerdotes diocesanos, como públicos são também os nomes dos presbíteros da prelatura. Também são conhecidos os nomes dos membros dos órgãos sociais das iniciativas apostólicas do Opus Dei que, em geral, também têm personalidade civil, e cujas actividades são públicas.

Mas, não é verdade que a prelatura não divulga a lista de todos os seus fiéis? Sim, claro, como também nenhuma diocese, ou paróquia, publica a lista dos fiéis diocesanos ou paroquiais, sem que por esse motivo possam ser tidas por ‘secretas’ ou ‘discretas’.

Propor que os políticos e os altos cargos públicos declarem a sua pertença a ‘organizações de carácter discreto’ não só é discriminatório, como absurdo. Com efeito, se se exige que o candidato a um determinado cargo público declare a sua pertença a uma organização católica, só há duas hipóteses: que essa declaração de interesses seja relevante para a sua nomeação; ou, pelo contrário, não interfira com esse processo.

Ora, se uma declaração com esse teor teria consequências para a nomeação do declarante, nomeadamente impedindo-a, seria, obviamente, discriminatória e contrária à mais elementar liberdade religiosa, dada a natureza exclusivamente confessional da instituição. Se, pelo contrário, essa declaração não tiver qualquer consequência no que respeita ao concurso público, então para quê exigir uma declaração que seria, nesse caso, absolutamente irrelevante?!

Além do mais, uma tal exigência seria, com toda a certeza, inconstitucional. E, em termos morais, seria defensável que um cristão, que fosse abusivamente questionado sobre a sua pertença a uma instituição católica, omitisse, em legítima defesa, essa menção, se necessário for para evitar uma injusta discriminação.

A proposta é também discriminatória em relação às restantes instituições católicas, o que não é justo. Com efeito, há muitos paroquianos da Encarnação, ao Chiado; de Maximinos, em Braga; do Bonfim, no Porto; de São José, em Coimbra; e de todas as restantes paróquias portuguesas, a participar em concursos públicos, sem menção da sua pertença a estas instituições católicas, não menos discretas do que a prelatura do Opus Dei. Quantos acólitos, escuteiros, guias, sacristãos, irmãos de confrarias, organistas, leitores, ministros extraordinários da Comunhão, catequistas ou vicentinos andam por aí sem que ninguém saiba?! Não seria bom que se exigisse mais transparência a todos estes católicos ‘discretos’, senão mesmo ‘secretos’?! E que dizer dos leigos que participam nas actividades dos jesuítas, ou da Comunhão e Libertação, ou dos neo-catecumenais, ou dos carismáticos, ou dos focolares, ou dos franciscanos?!

Se pega esta moda, que lembra as odiosas práticas policiais do Estado Novo, institucionaliza-se a devassa à vida íntima e às convicções de qualquer cidadão. Por exemplo, antes de contratar um trabalhador, qualquer pessoa estaria legitimada para lhe exigir uma declaração de interesses filosóficos, políticos e religiosos. De facto, se um organismo público tem o direito de preterir um católico, nomeadamente do Opus Dei, qualquer entidade cristã tem também o direito de discriminar quem não seja crente.

É muito salutar a transparência dos políticos e altos cargos da administração pública, mas não à custa da liberdade religiosa dos cidadãos. Se o PAN protesta contra os animais em cativeiro, não queira contribuir para a instauração de um Estado policial, em que os cidadãos vivam em cativeiro, ao serem discriminados por causa das suas libérrimas opções religiosas.

Se se prosseguir por este caminho de discriminação e, talvez, de perseguição religiosa, qualquer dia exigir-se-á que os católicos usem um distintivo, como o regime nazi impôs, aos judeus, o uso da estrela de David. E não será de mais lembrar que essa exigência política de ‘transparência’ foi o princípio do fim, ou seja, o começo do Holocausto.