Um dos livros mais interessantes que li este ano foi Maniac, de Bejamín Labatut. É uma ficção centrada na figura de John von Neumann, matemático húngaro, judeu, que fugiu para os EUA nas vésperas da Segunda Guerra Mundial. O livro é interessante, entre muitos outros aspectos, porque ao nos dar a conhecer o percurso de von Neumann ficamos com a ideia do número incomensurável de cientistas húngaros, alemães, austríacos, praticamente todos judeus, que eram europeus, gostavam de viver na Europa, não queriam ir embora para os EUA, mas que se viram forçados a emigrar e a contribuir para o desenvolvimento da ciência noutro país que beneficiou com o seu conhecimento e com a sua inteligência.

Recordei-me deste livro porque na campanha para as europeias é curioso ver como os que se dizem grandes defensores da tradição, do passado, da cultura e da história são os que menor conhecimento têm sobre essa mesma tradição, passado, cultura e até da própria história. Outro ponto interessante é a semelhança de discurso de forças políticas como o Chega e o PCP, no que toca à defesa do interesse nacional. O primeiro, logo na terceira linha do Preâmbulo, o segundo no ponto II, dos respectivos programa eleitorais encaram a construção europeia como um meio de afirmação dos interesses nacionais. No seu entender, a UE deve ser um espaço onde cada um “puxa a brasa à sua sardinha” e se procura safar o melhor possível. Naturalmente, isso pressupõe a crença na velha ideia marxista que se um ganha outro terá de perder. Que não há negociações possíveis com ganhos para todos e que a política é um jogo de tudo ou nada: ou se ganha ou se perde e a história acaba por ser contada por quem vence.

Mas esta visão simplista implica também que quem perde procure a primeira oportunidade para virar o jogo a seu favor ou, caso não o consiga, sair da UE. E é aqui que o desconhecimento que estes dois partidos têm da tradição, do passado, da cultura e da história do nosso país e da Europa se torna evidente: é que nem Portugal nem a Europa constituíram uma unicidade étnica, racial a cultural, sequer religiosa. O Portugal grandioso que, por exemplo, o Chega diz representar e quer recuperar é muito diferente da visão que este partido tem do país. Da mesma forma, a Europa que o Chega pretende limpar tem décadas porque durante séculos foi outra muito diferente.

A ênfase na nação surgiu como substituto da legitimidade divina perdida com a Revolução Francesa. Os monarcas deixaram de se sustentar em Deus, mas nos cidadãos. A melhoria de vida, o crescimento das cidades aumentou o grau de exigência das populações, ao mesmo tempo que estas se desenraizavam dos campos onde nasceram e os seus antepassados habitaram durante séculos. A nação foi o instrumento que as juntou. Em Portugal, o fenómeno não foi muito sentido, pois o nosso país era já uma nação europeia no sentido que se começou a valorizar e já tinha perdido a diversidade que, outrora, o tornou inovador. Mas por toda a Europa esta alteração nas fundações da legitimidade política foi revolucionária. O processo, iniciado com a Paz de Vestefália em 1648, com o reconhecimento da independência da Holanda face à Espanha, ainda não terminou como vemos todos os dias na guerra que a Ucrânia trava contra o último império no continente europeu, que é a Rússia. Tem sido um processo longo, positivo em muitos aspectos, mas catastrófico noutros como foram os casos das duas guerras mundiais no século XX.

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Desde a execução de Luís XVI que a Europa procura um equilíbrio que permita a resolução pacífica dos conflitos fronteiriços e impeça a sua propagação à escala continental. Quem desde muito cedo viu esta necessidade foi Clemens von Metternich, ministro dos negócios estrangeiros, mais tarde chanceler do Império Austríaco e dos obreiros da paz europeia do século XIX. Metternich, que admirava o sistema político inglês, procurou, no decorrer da sua longa carreira, que o equilíbrio entre os Estados fosse o mais consensual possível. O interesse nacional (ou dos Estados) deveria ser enquadrado num interesse mais amplo, europeu. E a sua percepção, correcta como o futuro o demonstrou, explicava-se no seguinte raciocínio: cada um pode ganhar algo se ceder um pouco, mas todos perdemos se exigirmos tudo.

O Império Austríaco (como o seu antecessor Sacro Império Romano-Germânico) era constituído por uma série de nações, etnias e religiões que se faziam representar em sede própria, de acordo com o sistema constitucional vigente. A fórmula de Metternich não aguentou os embates nacionalistas, pois as instituições austríacas não tinham a flexibilidade nem a capacidade de adaptação das inglesas. Mas o seu conceito sobreviveu e constitui hoje a base para a construção da União Europeia: uma união económica e política de estados europeus que compreendem que o seu interesse nacional está relacionado com o europeu, que é a paz e a cooperação.

Ora, essa paz e cooperação não são possíveis se cada estado puser o acento tónico no seu interesse nacional e imediato. Da mesma forma, a Europa não cresce, não se desenvolve nem terá capacidade de acompanhar a inovação tecnológica dos EUA e da China se não aceitar a diversidade cultural. Se não compreender que foi essa diversidade que tornou a Europa num centro de inovação e de pensamento até aos anos 30 do século passado. Precisamente até ao momento em que a defesa irracional do interesse nacional e a crença utópica na unicidade étnica atingiu o seu extremo, matou milhões de inocentes e expulsou daqui para fora pessoas brilhantes como John, aliás Neumann János Lajos.