Foi noticiado recentemente, ser intenção do governo polaco, realizar um referendo com a seguinte pergunta. “Aceita que a Polónia receba milhares de imigrantes ilegais de África e do Médio Oriente?”. Se esta consulta for por diante, com uma pergunta formulada nestes termos, a percentagem de votantes que responderá não, conseguirá certamente ultrapassar o recorde europeu até hoje detido por Adolfo Hitler, quando, em 10 de Abril de 1938, conseguiu que 99% dos austríacos votassem a sua própria anexação à Alemanha nazi, neste caso dizendo sim. Ou seja, será um referendo com uma tão fortíssima possibilidade de obter 100% de votantes a dar a mesma resposta que será candidato ao Guiness. Melhor ainda, com uma pergunta assim formulada, em todos os restantes países da União Europeia, mas também no Mali, na Síria, no Sri Lanka, no Panamá, na Groenlândia, no Alasca ou nas Galápagos, isto é, em todo o mundo, se obteria um resultado de 100% de recusa. De facto, não custa admitir que alguém não “aceite milhares de imigrantes ilegais” e logo especialmente do “Médio Oriente e África”, a começar pelos próprios países de tais geografias. É, portanto, um referendo de soma zero, porque todos dariam a mesma resposta.

Numa coisa, à parte de referendos abstrusos, existe um consenso: a União Europeia não consegue lidar com a chamada imigração ilegal. Apenas empurra com a barriga. De facto, no conceito que se tornou corrente de imigração ilegal, cabem situações inteiramente diferentes, como sejam a de refugiados políticos ou étnicos, vítimas de desastres naturais, situações pontuais de escassez e fome ou o mais tradicional emigrante económico, que pretende melhores condições de vida noutro país, ainda que não se encontre numa situação de emergência naquele onde vive. Neste último caso – os emigrantes económicos puros – não deixa de ser curioso os polacos, e já agora também os portugueses, estarem (face ao rácio populacional) na primeira linha das nações que mais emigrantes ilegais enviaram para outros países nos séculos XIX e XX.

É claro, e já veremos isso mais adiante, que este presuntivo referendo polaco tem objectivos diversos dos que aparentemente revela. A Polónia foi o país que mais refugiados de guerra recebeu da Ucrânia desde fevereiro de 2022. Portanto a Polónia, que é signatária da Convenção de Genebra sobre refugiados, sabe que não pode reenviar uma pessoa na condição de refugiado para uma zona de guerra, seja essa zona no Donbass, na Síria ou no Níger.

Igualmente a Polónia, sendo signatária da Convenção Universal dos Direitos do Homem e membro do Conselho da Europa, igualmente sabe que não pode discriminar alguém por ser branco ou negro, protestante ou muçulmano, do Médio Oriente ou de África. Pode recusar residência no país por outras razões, mas não por estas. A isso se vinculou através dos tratados que assinou, tratados esses que a Polónia não deixa sempre de invocar, quando lhe convém.

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O que está em causa neste referendo-chantagem que o governo polaco anuncia é o facto de ser intenção da Comissão Europeia forçar os Estados membros a partilhar responsabilidades pelos migrantes que surgem na Europa pelos mais diversos meios e caminhos. Isso implica aliviar a Itália, a França e a Alemanha, nomeadamente (como o Reino Unido se tivesse permanecido na UE), e redistribuir o encargo da integração por todos os Estados membros de acordo com a sua dimensão e capacidade de acolhimento.

Acontece que a Polónia, como a Hungria, a República Checa ou a Eslováquia, por exemplo, não são países procurados de modo significativo pela emigração ilegal, talvez por não serem atrativos em termos de empregabilidade e integração. Assim, encontrando-se a salvo destas migrações, porquê assumir tal encargo em “segunda mão”?

Ora é aqui que se coloca o eterno problema da solidariedade europeia. Se a Polónia recebe todos os fundos de coesão (nem sequer é contribuinte líquido para a União) e todos os fundos dos PRR, não será normal que também assuma algum encargo a este título, ainda que a contragosto? Na tão católica Polónia, a mão que recebe, não dá?

Não é ainda seguro que este referendo vá mesmo adiante. Mas à partida, se o referendo é uma forma de democracia directa, tão legitima como a democracia representativa, não será por acaso que é esta última que constitui a espinha dorsal dos sistemas políticos não autocráticos à escala mundial, ao invés do referendo, usado escassamente.

Se dúvidas subsistirem, independentemente de reservas ou simpatia pelo recurso ao referendo, este exemplo polaco serve para demonstrar como através da manipulação da pergunta se pode no final obter o resultado pretendido. Ora, se é feita uma pergunta cuja resposta já se sabe, não se está a fazer pergunta alguma.