Há um par de semanas, o Rei Emérito de Espanha Juan Carlos I voltou a pisar o solo espanhol depois de quase dois anos de ausência. Acusado por uma ex-amante de receber comissões em vários negócios e guardar o dinheiro em paraísos fiscais, Juan Carlos de Bourbon exilou-se em Abu Dhabi em Agosto de 2020 para evitar uma extradição à Suíça ou a Espanha no caso de ter que responder a algum tipo de acusação criminal. Uma combinação da avançada idade, com o descaramento próprio e a bajulação alheia fez Juan Carlos I acalentar a possibilidade de voltar a viver em Espanha agora que nada teme da justiça: pagou mais de 4 milhões de euros em impostos numa regularização retroactiva, a procuradoria suíça anunciou o fim das investigações e em Espanha estas também foram abandonadas, já que, ou isso disseram, incidiam apenas sobre acontecimentos que ocorreram durante o reinado do monarca, pelo que estavam a coberto da imunidade de que o Rei usufruía então.
Chegou ao país em jacto privado para uma visita relâmpago. Os amigos do Rei informaram a imprensa de todos os passos que este ia dar para assim maximizar a cobertura informativa. Apesar de todos os escândalos Juan Carlos I ainda é uma figura bastante popular no país e foram muitos os admiradores que apareceram pelos locais onde passou e o incentivaram com aplausos e vitories. Numa destas deslocações, salvo erro a 22 de Maio, o carro que o transportava detém-se ao pé dos repórteres e o Rei abre a janela. Uma jornalista da Sexta, canal de TV conotado com a esquerda, depois de duas perguntas inócuas atira: “vem para dar explicações?” Responde Juan Carlos – “Explicações de quê?” – e, enquanto o carro arranca, ainda se ouve a sua gargalhada característica a sumir com ele na distância. Não sabemos se a risada serviu para disfarçar o incómodo da pergunta ou se foi porque, depois de todos os escândalos, realmente (em ambas acepções da palavra) ainda se ri na nossa cara. Independentemente da resposta, que nunca saberemos, esses poucos segundos são uma ilustração perfeita do declínio e queda de um monarca que chegou a ser inquestionavelmente o símbolo do regime democrático que substituiu o Franquismo há quase cinquenta anos.
O Rei Juan Carlos I é uma das peças fundamentais da chamada Transição, que é o período após a morte de Franco que começa quando os dirigentes franquistas dissolvem as suas Cortes e põem fim ao seu próprio regime. Quer dizer, quando se exoneram de uma tacada a si próprios no Congresso dos Deputados. Também o Rei, enquanto herdeiro plenipotenciário do Generalíssimo, abdica dos poderes ditatoriais que recebeu como herança de Franco remetendo-se a um papel mais simbólico, afim ao das principais casas monárquicas europeias. Ao contrário do que sucedeu em Portugal, onde o Estado Novo caiu vítima de um golpe de estado, os governantes espanhóis provocaram desde dentro o fim do próprio regime. O último suspiro da velha ordem só aconteceu a 23 de Fevereiro de 1981. A invasão do parlamento e tentativa de golpe por parte de alguns militares deixou o país ansioso durante largas horas. Muitos espanhóis, os mais velhos principalmente, temeram a eclosão de uma nova guerra civil. Mas acabou por ser só a constatação de que a antiga Ditadura estava morta e enterrada. Ao anunciar aos revoltosos que se mantinha fiel ao regime democrático, Juan Carlos I provocou a capitulação destes, já que contavam com obter o favor real para convencer as restantes Forças Armadas a aderir ao golpe. O Rei emergiu deste episódio como o salvador da democracia no imaginário comum. Os mais atentos sabem que o seu papel nessa noite foi mais ambíguo. Como nos pronunciamentos militares de antanho, o papel dos reis era contar espingardas e declarar o vencedor da contenda sem derramamento de sangue. Foi o que Juan Carlos I fez na noite de 23 de Fevereiro. O derramamento de sangue também foi evitado porque, ao contrário de 1936, governo e revoltosos acataram as regras não-escritas dos pronunciamentos militares e não desataram aos tiros uns aos outros. Passado o susto, da direita à esquerda política, o mito de um rei que se colocou inequivocamente do lado da frágil democracia interessava a todos, e assim persistiu até hoje.
A tragédia real foi que o próprio Juan Carlos nunca quis perceber que com a morte do franquismo começava a desaparecer a Espanha que o aclamava como herói e lhe perdoava os pecados. Tal como Portugal, a Espanha teve nas décadas de 50 e 60 um elevado e sustentado crescimento económico e registou o maior período de convergência com os países mais desenvolvidos da história recente. Isto é um facto óbvio que incomoda muita esquerda e alguma direita. As respectivas ditaduras terão tido algum mérito nisso, mas também fizeram algum aproveitamento de uma conjuntura que lhes foi favorável. O presente texto não tem por objectivo apreciar as causas desse êxito, tão só salientar que, com a crise económica que surgiu a partir de finais da década de 60, os regimes ditatoriais da Europa do Sul, na Grécia, Portugal e Espanha deixaram de poder sustentar-se e, no descontentamento que se seguiu, caíram de podre, tendo a vasta maioria da população manifestado a sua preferência por regimes democráticos à imagem daqueles vigentes na próspera Europa do Norte, acreditando ingenuamente que a prosperidade era simplesmente uma questão de mudança de regime. Não é. A prosperidade é essencialmente uma questão de coordenação de uma sociedade com uma vasta divisão do conhecimento e o regime político pode ser um incentivo ou um empecilho a essa divisão, independentemente da sua forma de governo ou processo de escolha dos governantes.
A Espanha de 1975 (e nisto Portugal também se lhe pareceu), apesar do fenomenal desempenho económico que registava até então, carecia ainda das instituições necessárias para poder comparar-se “modernidade” aos países mais desenvolvidos. A Espanha de finais dos anos 60 apresentava um dinamismo económico bastante interessante, como atestam não só o aparecimento de largas camadas de uma classe média cada vez mais próspera e independente da proximidade do poder político, como de um grande número de industriais e comerciantes, que fizeram fortunas longe dos gabinetes oficiais e das recompensas distribuídas através do Boletim Oficial do Estado. O caso mais célebre é seguramente o de Amâncio Ortega, um pobre filho de um guarda de estação ferroviária que se converteu num dos homens mais ricos do mundo porque conseguiu implementar um negócio de fabricação e comercialização de roupa desde o zero. A fortuna de Amâncio Ortega, para desânimo da generalidade da intelectualidade de esquerda, muitos deles filhos de boas famílias, não só desafia a visão do mundo destes, em que os pobres estão condenados à miséria sem a sua intervenção salvífica, como exemplifica inequivocamente um caso de sucesso na coordenação de uma sociedade complexa na satisfação da necessidade de milhões de indivíduos de uma forma eficiente. Amâncio Ortega é muito rico porque coordena com êxito a criação de valor para muita gente.
Mas a Espanha dos anos 70 também encerrava outra realidade. Uma em que as grandes famílias do regime e as suas extensões clientelares ocupavam lugares chave na coordenação de algumas das estruturas de produção mais importantes da sociedade, como os grandes conglomerados industriais e financeiros. Curiosamente, grande parte dos filhos dos próceres da Ditadura, por terem acesso privilegiado ao que sucedia no estrangeiro, estiveram na vanguarda da transformação política do país, liderando o processo democrático, em muitos casos, perpetuando essas mesmas famílias no poder em democracia. Num dos vértices destas estruturas clientelares que emanam do poder político, esteve durante quase quatro décadas o Rei Juan Carlos I. Do Palácio da Zarzuela partia um sistema clientelar de tráfico de influências que alcançava um vasto conjunto de organizações públicas e privadas, que utilizavam o poder formal ou informal do Rei para obter favores. O banqueiro Mário Conde, outrora personagem influente no círculo real, mas caído em desgraça quando se tornou demasiado poderoso para a classe política tolerar, conta nas suas memórias, com impostora candura, um destes episódios. Já presidente do Banesto, recebe uma chamada do Rei, que conhece pessoalmente há muitos anos. Este pede-lhe que apoie a candidatura de Paco Sitges à presidência da Asturiana de Zinc, uma empresa mineira em que o Banesto era accionista maioritário.
Este episódio é um grão de areia no tráfico de influências. Provavelmente o Rei nem sequer recebeu um retorno económico como contrapartida da sua gestão, ficando apenas credor de um favor. Estas redes clientelares existem em todos os lados e são um factor crítico de sucesso e diferenciação para os seus integrantes. Durante os anos oitenta e princípio dos anos noventa, quando a Espanha que experimentava uma prosperidade renovada, fruto da abertura económica, da liberalização económica, dos fundos europeus e da expansão do crédito concedido pelo sistema financeiro, as redes de favores foram instrumentais para aceder a essas oportunidades. Era uma terra de oportunidades e oportunistas, a que se arrimaram não só a Família Real como grande parte do Governo socialista de Felipe González, para não falar de outras personagens menores da política, como os líderes dos governos das autonomias, ou alcaldes e concejales do poder local. Foi a época do chamado pelotazo, palavra que se pode traduzir livremente por “golpada”, em que personagens como Jesus Gil y Gil podiam ser admiradas como exemplos de sucesso, apesar de se apresentarem publicamente num jacuzzi na companhia de duas ou três prostitutas. Nestes tempos convulsos e dinâmicos quem é que ia censurar as frequentes escapadelas do Rei com coristas, atrizes e modelos da época, que toda a Madrid conhecia e nenhum jornal publicava? Se o Rei ganhava dinheiro exercendo a sua influência e despejando o seu charme no meio da alta sociedade nacional e internacional, para a vasta maioria da população isso era totalmente merecido, pelo trabalho que desenvolvia na promoção da “Marca Espanha”. Esta fraca embalagem das actividades reais ilícitas era suficiente para convencer quem, culturalmente, não via grande mal nisso.
Só que os anos avançavam e com eles, para o bem e para o mal, a integração europeia e essa forma puritana e anglo-saxónica de organizar a sociedade em que o tráfico de influências já não dispensa um bom escritório de advocacia. Tornou-se caro e, desse modo, inacessível a grande parte da população. A Espanha actual não será o modelo de sociedade avançada com uma coordenação espontânea de empreendorismo baseada em preços livres determinados por processos de mercado, mas isso aliás, nem mesmo os Estados Unidos são. Também ali existem muitos grupos e lobbies agarrados ao poder que conseguem extorquir rendas do exercício do poder político. Mas transformou-se nesse aspecto muito mais do que Portugal, que partiu de uma situação practicamente idêntica no fim da sua ditadura, mas nunca se conseguiu libertar da ubiquidade das redes clientelares que, sem o dinamismo social e empreendedorismo individual, afogam o desenvolvimento de uma ordem espontânea, complexa e próspera. Essa diferença em relação a Portugal foi suficiente para que a Espanha em que Juan Carlos prosperou tenha deixado de existir. Ou exista menos. As redes clientelares nunca desaparecem na sua totalidade, mas nos países desenvolvidos deixam de poder actuar às claras. O Rei nunca fez muito por disfarçar, diz-se que recebeu do consórcio que construiu a linha de alta velocidade entre Medina e Meca, na Arábia Saudita, mais de 300 milhões de euros. Além disso, pecado supremo da distopia actual, não pagou impostos sobre esses rendimentos, algo que na década de oitenta era considerado por muitos cidadãos comuns sinónimo de sagacidade e até prestígio, mas hoje se considera um privilégio incompreensível.
Dizem que a Casa Real estava consciente de que os tempos mudavam e os conselheiros do Rei lhe imploraram durante a primeira década do século XXI que abandonasse essas práticas altamente lucrativas no curto prazo, mas que punham em perigo a subsistência da Monarquia em Espanha. O Rei Juan Carlos I foi ignorando esses avisos, possivelmente acreditando que a sorte que o fez ser o primeiro chefe-de-estado a reverter uma República em décadas, a ventura com que conseguiu saltar o próprio pai na linha de sucessão e a fortuna que o enriqueceu para além das suas melhores expectativas no caminho não o iam abandonar. Até que um dia sofreu uma queda grave numa caçada a elefantes no Botswana, paga por um empresário Saudita, na companhia de uma atraente aristocrata alemã que, para além de amante com casa posta dentro do próprio complexo da Zarzuela, lhe serviu de testa-de-ferro nalgumas operações financeiras. O mundo em que Juan Carlos I viveu os seus melhores momentos tinha acabado há muito. De símbolo do regime nos anos oitenta, na cultura actual de indignação fácil e moralidade a preto-e-branco, transformou-se em abusador de animais, predador sexual e defraudador da fazenda pública. Em 2012, quando este episódio sucedeu, o país passava por uma grave crise financeira e os jornais já não abafaram a história, como tantas vezes tinham feito antes. Ao salvador da democracia em Espanha restava-lhe desaparecer discretamente da ribalta. Pediu perdão e, dois anos depois, acabou por abdicar. No passado dia 23 de Maio, durante um almoço no Palácio da Zarzuela agora ocupado pelo filho, o Rei Felipe VI deixou claro que a única coisa que a Monarquia ainda espera de Juan Carlos I é que os espanhóis esqueçam que ele existe. Num futuro já não tão distante os seus restos mortais serão sepultados no Palácio-Convento do Escorial e, com eles, uma Espanha bastante canalha, mas também muito mais divertida e livre que esta que nos tocou em sorte.
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