Pode parecer uma contradição usar a conjunção “ou” em vez de “e” no título deste artigo, pois muitos, à direita e à esquerda, consideram que são quase sinónimos. O ponto que quero fazer é precisamente o de distinguir ambos. Por consolidação orçamental inteligente, assente numa estratégia orçamental clara, entendo um processo de ajustamento de longo prazo das finanças públicas, com objetivos bem definidos, que respeita as regras europeias, e que visa desendividar o Estado para níveis de risco aceitáveis. Já a austeridade, pode ser entendida como medidas ou de aumento de impostos ou de redução de despesa que vão além das necessidades para atingir aqueles objetivos.

No último artigo referi que os brilharetes orçamentais fazem mal à saúde do país e que o Ministério das Finanças se prepara para fazer mais um brilharete neste ano, a menos que vá tomar medidas extraordinárias adicionais às que já tomou este ano. Na última semana saíram mais dados que reforçam a nossa previsão do “brilharete”. O FMI acaba de rever em alta o crescimento da economia portuguesa (para 2,6%) e o INE acaba de divulgar os dados do saldo das administrações públicas para o ano que finda no primeiro trimestre de 2023 (um superavit de 0,1% do PIB). Tudo indica que teremos um excedente orçamental este ano. A questão que se coloca agora é qual deverão ser as medidas inscritas no OE2024 e a estratégia para os anos seguintes.

Vale a pena resumir em seis pontos aquela que é a estratégia orçamental do governo que apesar de não ser explícita na narrativa governamental, pode ser facilmente confirmada quer com os dados do governo do programa de estabilidade (PE), sujeitos a alguns cálculos, quer de outras instituições internacionais (FMI, OCDE e Comissão Europeia). Primeiro, o governo quer reduzir o peso da dívida pública a um ritmo mais rápido do que sugerem as previsões do FMI e daquilo que resulta da regra europeia de redução do excesso do peso da dívida (em relação a 60%) de 1/20 avos. Segundo, isto traduz-se em ter saldos orçamentais, nos anos 2023-2027, mais altos do que resultaria da aplicação dessa regra ou seja um maior esforço fiscal para a mesma despesa.  Perspetiva-se uma política orçamental restritiva, se expurgarmos os efeitos da subida dos juros e do ciclo económico. Isto verifica-se, mesmo ignorando-se a subestimação do saldo orçamental. Terceiro, o governo quer reduzir significativamente o peso do Estado na economia (de 44,8% para 42,1% de 2023 a 2027). Quarto, essa redução faz-se pela diminuição do peso da despesa pública mais do que pela diminuição da receita pública (e da carga fiscal) que também se antecipa. Quinto, a diminuição do peso da despesa pública é proporcionalmente maior na  redução da despesa com pessoal (% PIB) e menor nas prestações sociais. Sexto, na receita pública o peso das contribuições para a segurança mantém-se praticamente constante, diminuindo apenas o peso da receita fiscal.

Há, porém, três dimensões da estratégia orçamental que não são claras. A primeira, refere-se às medidas a tomar no contexto da diversificação das fontes de financiamento da segurança social. Dado o peso das prestações sociais (em particular pensões) na despesa pública, a orientação que vier a ser dada é crítica nas opções que se colocarão ao governo.  Soube-se esta semana que a Comissão, encarregue de apresentar propostas, deverá fazê-lo só em fins de Janeiro de 2024 pelo que o OE2024 terá ainda de ser feito na base da realidade atual.

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A segunda, é a política em relação ao emprego público, quer em volume, quer em remunerações. Portugal tem um volume de emprego público, em percentagem do emprego total, abaixo da média dos países da OCDE (ver Government at a Glance 2021). No que toca às remunerações, muito se houve falar dos professores por causa das greves, mas todos os profissionais das carreiras gerais e especiais da função pública viram o seu rendimento real piorar na sequência dos congelamentos salariais de 2005-07, de 2011 a 2017 e do corte salarial de 2012. O governo vai corrigir parcialmente esta situação com o chamado acelerador de progressões para os trabalhadores que progridem na carreira por pontos e que foram afetados não apenas por aqueles congelamentos, como pelas recentes subidas salariais bem abaixo da inflação. Para os professores do básico e secundário semelhantes medidas foram já aprovadas para acelerar a progressão. Estas são, porém, medidas extraordinárias que não definem um rumo futuro sobre a política de emprego público.

A terceira são as orientações de médio prazo para a política fiscal. No Programa de Estabilidade surge (p.36) apenas a redução do IVA dos bens alimentares em 2023 (nada nos anos a seguir até 2027), e redução da carga fiscal no IRS no período 2023-27. Nada é mencionado em relação a reduções em sede de IRC.

Sem prejuízo do que está incerto na estratégia do governo, não me parece sensato nem desejável aprovar orçamentos que têm uma clara natureza restritiva na prática e depois durante o ano, quando se verifica que existe folga orçamental, como agora, ir-se tomando medidas discricionárias geralmente do lado da despesa para se ficar próximo dos objetivos orçamentais.

Sobretudo discordo da redução da dívida pública de forma tão acelerada por criar um ónus significativo nas gerações atuais já fustigadas por três crises consecutivas. Um ritmo acelerado de ajustamento significa que o espaço orçamental que poderia existir para o não corte real das remunerações na função pública deixa de existir. A requalificação salarial é essencial para reter quadros qualificados nos serviços do Estado (saúde, educação), que cada vez atrai menos os jovens. Do mesmo modo que um ritmo rápido de desendividamento do Estado não abre espaço para um moderado alívio fiscal. Neste momento a política orçamental não deve ser expansionista, mas também não deve ser restritiva e está a sê-lo.  Consolidação orçamental sim, mas austeridade não. Uma redução dos rendimentos reais é isso que significa. Há quem tenha dito que o povo português “aguenta, aguenta”. De facto aguenta, mas por vezes à custa de votos em partidos extremistas.